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“1798 – REVOLTA DOS BÚZIOS”

Filme revela conspiração
influenciada pela
Revolução Francesa na Bahia

Albenísio Fonseca

Com pré-estreia nacional em São Paulo, realizada no dia 28 de maio, destinada a convidados e seguida de debate no Espaço Augusta de Cinema, na rua Augusta, o filme “1798 –  Revolta dos Búzios”, do cineasta  baiano Antônio Olavo, traz às telas a influência iluminista da Revolução Francesa (1789) no planejamento do levante que pretendia derrubar o governo colonial.

Sim, o objetivo era proclamar a independência e implantar uma República democrática, livre da escravidão, onde haveria, conforme acenavam, “igualdade entre os homens pretos, pardos e brancos”.

A partir do dia 30, estará em exibição em salas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Manaus, Aracaju, Goiânia, Brasília e Recife. Em Salvador, além do Cine Glauber Rocha, na Sala de Arte e nos cinemas dos Shopping Barra e Paralela. O filme de Antônio Olavo integra um projeto conjunto de cinco cineastas da Bahia, três dos quais com suas produções já concluídas e dois em fase final de edição.

Homenageado da Mostra Itinerante de Cinemas Negros Mahomed Bamba – MIMB, em evento realizado no Teatro do SESC (Pelourinho), no último dia 17 de abril, Antônio Olavo, roteirista e diretor de 19 documentários (7 longas e 12 curtas), declarou que “seguirei nesse caminho, nessa luta, mesmo enfrentando obstáculos desanimadores, sonhando em realizar no cinema a trilogia das grandes lutas negras dos séculos XVIII e XIX na Bahia: 1798 – Revolta dos Búzios (que está sendo lançado nacionalmente agora), a Revolta dos Malês e A Sabinada”, salientou. 

Traída, como toda revolução, a revolta  em Salvador foi denunciada antes da deflagração e o governo instalou não apenas uma, mas duas Devassas que, durante 15 meses, convulsionaram a cena política na Bahia, atingindo centenas de pessoas com ameaças, detenções, interrogatórios e, finalmente, condenações de açoites públicos, prisões, degredo perpétuo, até penas de mortes.

As sentenças máximas se abateriam sobre quatro homens negros: os soldados Luís Gonzaga (36 anos) e Lucas Dantas (23 anos), e os alfaiates João de Deus (27 anos) e Manoel Faustino (22 anos), enforcados e esquartejados em 8 de novembro de 1799 na Praça da Piedade, na capital baiana.

UMA HISTÓRIA APAIXONANTE COM MUITOS NOMES

A Revolta dos Búzios, também designada por Revolução dos Alfaiates, Conjuração Baiana, Sedição de 1798, Movimento Democrático Baiano e Inconfidência Baiana, “é uma história apaixonante, que precisa e merece ser conhecida mais amplamente pelos brasileiros”. 

Olavo tem se dedicado ao longo dos últimos 19 anos à pesquisa e estudo sobre esta conspiração republicana, tendo como principal fonte os “Autos da Devassa”, documento de inestimável valor histórico, com mais de 2  mil páginas escritas no “calor da hora dos acontecimentos”, contendo o desdobramento minucioso da extensa investigação sobre a revolta.

Os “Autos”, principal fonte primária do episódio, cobrem o período de agosto/1798 a novembro/1799 com as transcrições manuscritas das dezenas de sessões da Devassa, incluindo a íntegra dos longos depoimentos das mais de 70 pessoas envolvidas na conspiração. Conforme o cineasta, a mobilização transcorrida na Província da Bahia é, ainda, “algo novo na nossa historiografia, diferentemente de outros movimentos conspiratórios no Brasil Colonial”.

Distinta das movimentações revolucionárias em Minas Gerais, em 1789, e no Rio de Janeiro, em 1794, a conspiração baiana de 1798 defendia a Independência, que só viria em 1822, e a República, proclamada apenas em 1889. Mas avançava na defesa do fim da escravidão, conquistada somente em 1888, aspecto que coloca um qualitativo diferencial nesta conspiração de homens negros, pardos e brancos na Bahia.

CIDADES ALTA E BAIXA

Mais que um documentário, o filme de Antônio Olavo mostra o quanto, ao final do século XVIII, “Salvador era uma cidade agitada, barulhenta, suja e ao mesmo tempo cheia da vida que lhe conferia 60 mil habitantes, entre os quais 70% de africanos e afrodescendentes. Com ruas mal calçadas e estreitas, ladeadas por corredores de casarões, era dividida em Cidade Alta e Cidade Baixa”, enfatiza o cineasta.

– A Cidade Baixa, formada pela longa e tortuosa Rua da Praia, era o local do comércio, com intenso movimento de trabalhadores no cais do porto. A Cidade Alta começava no Forte de São Pedro indo até a Soledade e ocupava a área nobre, em que se destacavam a Praça da Piedade, recém-aberta; a Praça do Palácio, núcleo central do poder político e administrativo e o largo do Terreiro de Jesus, ponto convergente de pretos e pardos, que ali recolhiam água da fonte e realizavam animados batuques, sob a insatisfação das igrejas locais.

Olavo pontua, além do mais, o quanto no entorno das praças, surgiam vários embriões de aglomerados urbanos como o bairro da Praia, Santo Antônio Além do Carmo, Palma, Desterro, Saúde e principalmente o São Bento, ao redor do poderoso mosteiro dos Beneditinos, donos de metade da área urbanizada da cidade.

Debruçado sobre historiadores que abordaram o tema, ele cita o professor Luís dos Santos Vilhena, que morou na cidade entre 1787 e 1799, ensinando grego. Vilhena escreveu que “há nela muitos edifícios nobres, grandes conventos e templos ricos e asseados”. Neste perfil, destacavam-se imponentes os prédios do Palácio do Governo,  o Palácio Arquidiocesano, a Câmara Municipal, o Tribunal da Relação, o Hospital Militar, além das igrejas, entre elas a da Sé.

SALVADOR ERA SEDE DA CAPITANIA DA BAHIA 

Salvador era, então, sede da Capitania da Bahia que, governada pelo fidalgo português Dom Fernando José de Portugal, tinha sob sua jurisdição as Capitanias de Sergipe e Espírito Santo. Inclinada sobre a encantadora Baía de Todos os Santos, a cidade recebia pelo mar quase tudo o que consumia. Vivendo do comércio, a urbis tinha o cais como o grande portal das relações econômicas e respirava um ar que tinha o cheiro do Recôncavo, celeiro fértil para o seu abastecimento, principalmente de farinha de mandioca, base da alimentação da população pobre e tão importante que fazia parte da remuneração de soldados e funcionários públicos.

Contudo os produtos mais relevantes para a economia regional eram o tabaco, produzido em Cachoeira e em Inhambupe e o açúcar, vindo dos grandes canaviais cultivados em terras de massapé no Recôncavo, particularmente na região do Iguape, onde se produzia excelente cana de açúcar. As mercadorias eram transportadas em saveiros, barcas e canoas, que utilizavam uma ampla rede fluvial, interligando o interior às sedes dos distritos e estes por sua vez a capital. Todavia, a carne, produto de luxo no consumo familiar, vinha dos grandes rebanhos de gado que se espalhavam pelas terras imensuráveis dos sertões baianos.

– A cidade negociava exclusivamente com Portugal e suas colônias, notadamente a Costa da Mina, na África, com a qual trocava tabaco e aguardente por negros, atividade altamente rentável, que a projetou como um dos principais centros distribuidores de negros escravizados para toda a Colônia. 

Em Salvador, toda a sociedade se utilizava da mão de obra escrava, e mesmo a Igreja, representada pelas principais ordens religiosas dos Beneditinos, Carmelitas, Jesuítas e Franciscanos, utilizava escravos dentro dos conventos e também os vendiam e leiloavam sem cerimônia.

CENÁRIO SOCIAL DA CIDADE

Tanto quanto esmiuçar os Autos da Devassa, em “1798 – Revolta dos Búzios”, o cineasta e pesquisador mostra que, entre os mais de 40 mil pretos e pardos aqui existentes, 12 mil eram escravizados e atuavam como base do funcionamento da cidade, totalmente dependente da população negra, livre ou cativa, visto que o branco, nobre ou plebeu, não faziam trabalhos manuais. 

“As mulheres negras trabalhavam como doméstica ou em serviços de ganho nas ruas. Os homens exerciam ocupações de pedreiros, carpinteiros, marceneiros, alfaiates, ferreiros, ourives, cabeleireiros, padeiros, calafates, trabalhadores de ganho, entre outras”, revela.

Ainda segundo Olavo, e como demonstra no filme, “boa parte dos homens brancos eram comerciantes e funcionários da Coroa Portuguesa, outros tantos, buscavam ocupar o longo tempo ocioso em saraus e bailes palacianos, hábito contumaz de uma elite social mundana, ainda saudosa da época áurea em que Salvador era a capital da colônia, posto que exerceu  por mais de 200 anos e perdera para o Rio de Janeiro em 1763”.

– Nesta cidade, onde o luxo e opulência de uma minoria branca se derramavam sobre as ruas, a majoritária população negra vivia em péssimas condições, o que expunha as contradições profundas de uma sociedade escravocrata, portanto racista e desigual, aquecendo o caldeirão da tensão social latente, que para muitos era indisfarçável.

CENTRO INTELECTUAL DA COLÔNIA

Antônio Olavo salienta, também, o cenário internacional. “No final do Século das Luzes se testemunhava o advento da Revolução Francesa, que difundiu a semente das revoluções, com os direitos do homem e do cidadão pelo mundo ocidental, ameaçando destruir  tronos, sob o tremular da bandeira da República e da Liberdade”.

– Esses acontecimentos ecoavam em Salvador, mais importante centro intelectual da Colônia que, mesmo sufocada pelas amarras opressivas da Metrópole, possibilitava fáceis canais de circulação das ideias revolucionárias, devido principalmente ao seu movimentado porto marítimo, no qual iam e vinham os mais avançados pensamentos liberais da época.

Como na pergunta do rap que marca o início de “1798” – “que história é essa que ninguém nunca me contou?” – o filme destaca, ainda, o quanto na Cidade da Bahia a elite ilustrada começava a substituir seus livros em latim, a língua culta, pelos escritos em francês, a língua da época. 

“Jornais, livros e folhetos vindos da Europa, trazendo as novas do iluminismo, circulavam discretamente na cidade e animavam encontros e debates. Essas ideias ganhavam adesão não somente entre “a nobreza da terra”, interessada na autonomia política, mas ampliavam-se para camadas de baixa renda, como alfaiates, marceneiros, pedreiros, cabeleireiros, ferreiros e ourives, quase todos pretos e pardos, que sofriam com as desigualdades na sociedade colonial”, destaca.

FRANCESIAS, AS INFLUÊNCIAS

Um antecedente marcante. Na manhã de 30 de novembro de 1796, singrando lentamente, uma embarcação se aproximava do porto. Era o navio Boa Viagem, que navegava sob bandeira espanhola e, alegando avaria, solicitou permissão para ancorar, trazendo à bordo um grupo de oficiais franceses, liderados pelo capitão da Marinha de Guerra da França Antoine René Larcher, navegador experiente e revolucionário de 1789.

Larcher permaneceu apenas um mês na cidade, mas tempo suficiente para muitas comunicações. Pouco depois, em carta ao governo francês, escreveu que a Bahia era um campo fértil para semeadura de propósitos revolucionários, pois seu povo estava “fatigado do governo real e teocrático” e sugeriu o envio de uma esquadra francesa para apoiar a revolução.

A França não enviou navios, mas os ideais iluministas germinaram e eram chamados de “francesias”. Até mesmo uma loja maçônica denominada “Cavaleiros da Luz” teria sido fundada em 14 de julho de 1797, aniversário da revolução francesa e funcionou como um centro de debates, envolvendo advogados, médicos, professores e religiosos.

Conforme o cineasta e pesquisador baiano, “no início de 1798, pairava no ar um ambiente anunciador de grande movimentação política que caminhava clandestinamente pelas ruas e becos da Cidade da Bahia. E era algo que não havia ocorrido ainda nos movimentos de contestação colonial no Brasil, pois confabulavam homens pardos, pretos e brancos, planejando um golpe “a fim de erigir o continente do Brasil em Governo Republicano, livre e independente”. Buscavam, para tanto, “um levantamento no povo, acenando aos cativos com a voz da liberdade”.

Os boatos circulavam dando conta de que homens ilustrados realizavam reuniões clandestinas para a leitura de livros e folhetos proibidos, de inspiração iluminista, e promoviam encontros e debates nos distantes e isolados arrabaldes de Itapagipe e Barra. Um manuscrito que circulou na cidade, afirmava que “aportou nesta cidade uma nau francesa que depois de descarregar com todo o segredo e sagacidade uns livrinhos cujo conteúdo era ensinar o modo mais cômodo de fazer sublevações nos Estados com infalível efeito, única carga que sem dúvida trazia, se retirou para o Rio de Janeiro”.

– Havia em muitos, o descontentamento e a revolta. O desejo de mudanças crescia e manifestações de protesto ocorriam amiúde, algumas ousadas, como a queima da tradicional forca da cidade, localizada no Campo da Pólvora, um dos maiores símbolos de repressão do Estado. As reações contra uma igreja comprometida com o poder era cada vez mais comum, fosse com o apedrejamento de nichos religiosos durante a madrugada, ou interrupção às pregações religiosas durante as missas.

PAPÉIS REVOLUCIONÁRIOS

O surgimento de “papéis revolucionários” na madrugada de 12 de agosto, deflagrando o movimento sedicioso de 1798, provocou uma reação imediata do governador da Capitania da Bahia Dom Fernando José de Portugal, que no mesmo dia baixou uma portaria determinando a abertura de uma Devassa sob o comando do ouvidor geral do crime e intendente da polícia, desembargador Magalhães Avelar de Barbedo, com o objetivo de identificar os autores dos “papéis”.

De imediato, a Devassa comparou letras de antigas petições no arquivo do governo e apontou o requerente de causas Domingos da Silva Lisboa como autor dos “papéis”. Domingos foi preso, mas para surpresa geral, uma semana depois, em 20 de agosto, apareceram mais dois manuscritos em forma de carta, destinados ao Superior da Ordem do Carmo e ao Governador da Capitania.

Os novos papéis ignoravam a prisão de Domingos, anunciavam dia e hora para o início da Revolução e curiosamente em forma de ultimato, conclamavam a adesão de duas das maiores autoridades da Capitania, nomeando-as chefe da igreja e chefe do governo. O surgimento destes novos panfletos tencionou ainda mais o ambiente político, desnorteando a investigação em curso, que apostava no final do caso com a prisão de Domingos Lisboa.

Preocupado com as incertezas e dimensões que os acontecimentos iam tomando e sem obter provas para incriminar Domingos, embora o mantendo preso, o governo buscou outro alvo de acusação e em 22 de agosto mandou prender o soldado Luiz Gonzaga das Virgens. 

REUNIÃO NO DIQUE, O FRACASSO

A notícia da prisão de Gonzaga logo se espalhou na cidade e chegou até Lucas Dantas através do soldado Romão Pinheiro. Imediatamente Lucas desceu para as Portas do Carmo, no Taboão, onde morava o ourives Luiz Pires, um dos mais ativos conspiradores e em cuja casa as ideias revolucionárias circulavam com facilidade, e ao chegar, encontrou reunidos os alfaiates João de Deus e Manuel Faustino, o cirurgião prático Freitas Sacouto e o ourives Nicolau de Andrade.

Lucas entrou na sala e disse em voz alta: “notícias funestas! Está preso o Gonzaga e foi hoje a tarde, no exercício do seu Regimento”. A notícia abalou a todos, deixando o ambiente tenso, pois também souberam que já circulavam boatos de que a polícia estava a procura de outros suspeitos de envolvimento na conjuração.

Temerosos de uma onda repressiva, os homens decidiram ampliar os contatos e convocar um grande ajuntamento no Campo do Dique, atrás do Convento do Desterro, para a noite de sábado, 25 de agosto, com o objetivo de avaliar a força de que dispunham e definir os próximos passos.

Caso a afluência fosse grande, seria libertado Luiz Gonzaga e desencadeado o Levante. Nos dois dias que se seguiram, muitos contatos e convites foram feitos, com promessas de se levar muita gente, criando com isso uma grande expectativa com a reunião, que se revelou frustrante, pois somente 18 homens compareceram.

No domingo 26 de agosto, dia seguinte à fracassada reunião no Campo do Dique, o governador já bem informado da conspiração pelas delações de três homens convidados de última hora, e impressionado com o rumo dos acontecimentos, pois também sabedor das conversas que circulavam na cidade, dando conta da eminência de um Levante com saques e assassinatos das autoridades, baixou nova portaria instalando outra Devassa, sob a responsabilidade do desembargador Francisco Sabino da Costa Pinto que iria investigar o Levante que se projetava fazer na cidade, a fim de estabelecer um Governo Democrático.

DEVASSA, AS CONDENAÇÕES 

Ameaçadora, a Devassa Costa Pinto anunciava: “os que entraram em semelhante conspiração ou como agente ou como cúmplice, tem cometido crime de Lesa Majestade de Primeira Cabeça D´Alta Traição” e iniciou intensa ação repressiva. No final da manhã o coronel Alexandre Teotônio comandou a invasão da casa de João de Deus, e o prendeu juntamente com sua esposa Luiza Francisca e os cinco filhos.

A onda de prisões prosseguiu durante os dias seguintes, continuando por meses em que a cidade viveu tempos dramáticos, com os processos de investigação, denúncias, interrogatórios, acusações e defesas. O governo português juntamente com a elite baiana, queria uma rápida apuração e uma punição rigorosa, com isto demonstrando o desejo de intimidar todos aqueles que ousassem desafiar o poder colonial.

O castigo serviria como exemplo a não ser seguido. Em março de 1799, uma portaria do governador exigiu que se cumprisse a ordem de Maria I, Rainha de Portugal, determinando que sejam “todos os réus sumariamente sentenciados”. Pressionadas por um desfecho rápido, punitivo e exemplar, as Devassas Avelar de Barbedo e Costa Pinto formalizaram o Termo de Conclusão, com os Autos Sumários de culpa de 37 réus: 34 presos, dois foragidos e um morto na cadeia pública.

A Devassa chega a sua fase final. Foram ouvidas 70 testemunhas entre 17 de agosto de 1798 a 1º de março de 1799. Das 51 pessoas presas, 16 delas foram soltas, uma morreu na cadeia e 34 foram consideradas culpadas e sofreram condenações que variavam de humilhantes açoites públicos, venda para o exterior, degredo perpétuo ou temporário e a morte na forca, seguida de esquartejamento dos corpos. 

Os membros das classes mais abastadas, porém, foram inocentados ou indultados. Note-se que era voz corrente na Bahia, que este movimento conspiratório teve  participação expressiva dos homens letrados. Mesmo alguns deles tendo sofrido  incômodos com a Devassa, nenhuma punição mais grave se abateu sobre eles. #

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Jornalista responsável
Albenísio Fonseca

Destaque

Sob governantes incultos, Estado deixa de adquirir obras do mestre da Escola Baiana de Pintura

Documento elaborado para aquisição das peças durante gestão de Pedro Archanjo no MAB

Albenísio Fonseca

A história e a iconografia da Bahia acabam de perder a chance de adquirir o conjunto da obra de José Joaquim da Rocha (Salvador, 1737-1807), criador da Escola Baiana de Pintura. “O MAB-Museu de Arte da Bahia tem obras de quase todos os artistas da Escola Baiana de Pintura, mas não tem nenhuma do mestre fundador da escola inaugural de Arte no estado”.

Quando diretor do MAB, o sociólogo e fotógrafo Pedro Archanjo realizou uma pesquisa sobre o mestre e descobriu que um colecionador paulista possuía três telas de Joaquim da Rocha e um colecionador baiano possuía duas outras. Archanjo revela ter conversado com o colecionador daqui e diz que “ele gostou tanto da ideia que adquiriu as três telas do artista junto ao colecionador de São Paulo”.

Davi toca harpa; Sacerdote oferece pão e vinho; Sacerdote sacrifica um cordeiro, José Joaquim da Rocha, 1786

– Elaboramos, então, um projeto de aquisição dos cinco quadros e conseguimos aprovar a proposta através da Lei Rouanet. Mas, para tanto, e dada a complexidade da obra de Joaquim da Rocha, criei um grupo de trabalho com três especialistas em barroco baiano com ênfase na Escola Baiana de Pintura e, após análises físicas, os especialistas  atestaram a autenticidade das obras.

Pedro Archanjo revela, ainda, que “já dispúnhamos até mesmo da empresa patrocinadora. Mas o que ocorreu, logo em seguida, foi minha exoneração da direção do MAB, por obra e graça de ex-diretor do IPAC. Aconteceu, contudo, de o colecionador baiano, de família árabe, ter ficado magoado com minha saída e decidiu que não mais ajudaria o MAB a resgatar as peças, fundamentais para o acervo da instituição”.

LÁGRIMAS SOBRE TELAS

Ao tomar conhecimento, agora,  de que o MNBA-Museu Nacional de Belas Artes (que ocupa o histórico Palácio do Catete, no Rio de Janeiro) adquirira as peças, Archanjo confessa que “chorei”. – Sim, as lágrimas me vieram diante da magnitude das telas que compunham a maioria das obras de arte barroca expostas na Igreja de São Pedro, demolida pela sanha construtiva de J. J. Seabra, então governador da Bahia, para dar passagem às obras de abertura da Avenida Sete de Setembro, em 1913.

Procissão de transladação das imagens da Igreja, em 1912, antes da demolição autorizada por J.J. Seabra
para abertura da avenida Sete de Setembro

EM EXPOSIÇÃO, NO RIO

O Mestre do Barroco Baiano agora ganha evidência no Museu Nacional, que recebe, no Palácio do Catete, as importantes obras de um dos grandes mestres do barroco brasileiro. 

As obras, originárias da Igreja de São Pedro, foram compradas por particulares, tornando-se pouco conhecidas do público.

José Joaquim da Rocha – pintor, encarnador, dourador e restaurador baiano – pintou muitas peças de cavalete, mas suas composições mais famosas são os grandes tetos de igrejas, realizados sob a técnica da perspectiva ilusionística, organizando complexas estruturas arquitetônicas virtuais ornamentadas com guirlandas e rocalhas, que sustentam um medalhão central, onde aparece a cena principal do conjunto, em geral apresentando Cristo ou a Virgem Maria em situações glorificantes. 

Pintura da nave ou forro da Igreja de N. S. da Conceição da Praia, em Salvador,

Como foi a praxe do período Barroco em que atuou, a pintura deveria edificar o observador e instruí-lo nos preceitos da Igreja, fazendo uso de uma plasticidade suntuosa e atraente ao olhar, que através da sedução dos sentidos levasse o devoto à contemplação das belezas do espírito.

Apesar de já ter recebido a atenção crítica de vários especialistas de renome, o estudo de sua produção ainda carece de aprofundamento e muito ainda permanece no terreno da conjectura, em particular no que diz respeito à autoria, pois não assinou nenhuma obra e grande parte do que deixou é-lhe atribuído apenas com base na tradição oral, sem documentação corroborante, o que dificulta o entendimento da sua trajetória e estilo. 

A despeito dessas incertezas, a partir do que se conhece com mais segurança, José Joaquim da Rocha já foi reconhecido como artista de importância superior, considerado o fundador da Escola Baiana de Pintura, o maior de seus integrantes e um dos grandes mestres do Barroco brasileiro.

Ele deixou vários discípulos e influenciou duas gerações de continuadores, que preservaram princípios da sua estética até meados do século XIX.

Agora, o conjunto de cinco pinturas está incorporado ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes. As telas são: Alegoria Agnus Dei, Alegoria Pelicano, David com sua harpa, Sacerdote apresentando pão e vinho e Sumo Sacerdote de Israel.

Elas ficarão expostas, a partir desse 16 de agosto até outubro no Salão Nobre do Palácio do Catete, como parte do programa de intercâmbio de acervos do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram).

Conforme anunciado pelo portal TecnoMuseu, “as obras do Mestre José Joaquim da Rocha são provenientes de uma coleção particular, adquirida no âmbito do Projeto Movimento de Aquisição de Obras para Museus Brasileiros. Elas chegam agora ao Rio com o barroco do Mestre José Joaquim da Rocha”. 

A aquisição das obras, doadas ao Museu Nacional de Belas Artes, teve o patrocínio do Instituto Cultural Vale através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, do MinC. 

Os valores dispendidos nas aquisições, pela Vale, ainda não foram tornados público, mas a Bahia, de costas para as Artes e a Cultura, perdeu. #

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LAGOA DO ABAETÉ É DEIXADA À PRÓPRIA SORTE PELO PODER PÚBLICO

Pode ser uma imagem de uma ou mais pessoas, corpo d'água e texto que diz "IPHAN, IPAC E FGM se eximem de proceder o tombamento do Parque do Abaeté Albenísio Fonseca"

Os três principais órgãos responsáveis pela preservação do patrimônio, nas instâncias de poder federal, estadual e municipal – IPHAN, IPAC E FGM –, demonstram total inapetência para com o tombamento do Parque Metropolitano da Lagoa e Dunas do Abaeté, em Salvador, a exemplo do descaso ambiental promovido, como política pública, pelo Governo do Estado.

Acionado pela Defensoria Pública Federal, em 7 de novembro, para que viabilizasse, em 90 dias, o tombamento provisório da Lagoa do Abaeté e do Parque das Dunas, em Salvador, o superintendente do IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, na Bahia, Bruno César Sampaio Tavares,  somente responderia três semanas depois ao procurador-chefe do órgão, Guillermo Gonçalves.

Alegava, no ofício, ser “irrazoável” a conclusão do processo no prazo estipulado, “tampouco a efetivação do tombamento, mesmo em caráter provisório, dado que não há informações suficientes para a indicação de risco de desaparecimento do bem; tampouco existe a delimitação clara deste último”.

No âmbito municipal, instância junto à qual foi requerido o tombamento do Parque Metropolitano do Abaeté, em 2019, por proponentes representantes da comunidade, a diretora de Patrimônio e Humanidades da FGM-Fundação Gregório de Matos, a arquiteta com Especialização em Gestão Cultural dos Estados do Nordeste, pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, Milena Luísa, ao fazer referência à Lei 8.550 de 2014, avaliou durante audiência com associações de moradores que o pedido de tombamento do Abaeté pela comunidade, ambientalistas e ativistas sociais, apresenta-se como “adequado e pertinente”.

A técnica chegou a salientar, então, que “o patrimônio para fins de preservação é constituído por bens culturais cuja proteção deve ser de interesse público pelo reconhecimento social no conjunto das tradições passadas e contemporâneas”. A antropóloga esclareceu, inclusive,  que, “além do pedido de tombamento, a comunidade poderia solicitar também o registro no Livro Especial dos espaços destinados às práticas coletivas”.

Tomada de área do Parque do Abaeté a partir do mirante

SUSPENSÃO DO PROCESSO

Com processo já aprovado e encaminhado pela própria FGM para tornar o Abaeté patrimônio histórico e cultural de Salvador, surpreendentemente, em agosto de 2022, Milena comunicava a suspensão do procedimento, sob alegação de que tal intento  “somente poderia ser implementado pelas instâncias estadual ou federal”, sem apresentar, no entanto, o embasamento legal de tal atitude e com transferência do processo para o IPAC-Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, órgão subordinado à Secretaria Estadual de Cultura.  

Antes, ela já havia estipulado o quanto “o tombamento é, acima de tudo, um ato político”. Chegou a mencionar até mesmo o quanto “iria reforçar a questão da preservação da APA e o registro no Livro Especial promoveria o Plano de Salvaguarda que visa estabelecer políticas públicas para preservar todos esses elementos culturais que deverão ser mapeados, caso ainda não tenham sido, para devida instrução técnica”.

APROVAÇÃO POR UNANIMIDADE

Durante a aprovação da demanda, por unanimidade, em 1º de setembro de 2020, durante reunião virtual do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural da Fundação Gregório de Mattos – justificada por ser um “sítio natural sagrado com paisagem única composta por dunas, vegetação de restinga e lagoas associadas ao Bioma Mata Atlântica” – foi enfatizado o quanto o tombamento “somou-se aos apelos da população, técnicos e artistas ao Governo do Estado, via Conder-Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, contra a continuidade da construção de uma Estação Elevatória de Esgoto (EEE) às margens da Lagoa do Abaeté”.

Durante a reunião virtual, Milena chegou a estipular que “a Fundação Gregório de Mattos buscará fazer a instrução sumária com celeridade para que possa ser aberto o processo e dar ciência ao Ministério Público [do Estado da Bahia], a cerca desta abertura de processo e o pedido de que seja avaliada esta questão do que está ocorrendo e que a comunidade está chamando a atenção como não favorável às intervenções paisagísticas do Abaeté e a preservação deste patrimônio que é simbólico e muito importante para a nossa cidade”.

ALEGAÇÕES SÃO CONTESTADAS

Consultora jurídica informal das representações comunitárias, a analista Judiciária Marcele do Valle ressaltou o quanto “o interesse que deve prevalecer é o de que a natureza e a cultura, nesse caso do Abaeté, sejam cada vez mais protegidos. Ações e omissões (também uma forma de agir) do poder público têm diminuído cada vez mais a proteção do equipamento. Esse jogo de empurra está garantindo brechas para a exploração e degradação e fragilizando cada vez mais essas áreas”. Segundo Marcele, “a força dos instrumentos de proteção ambiental e do patrimônio histórico e cultural cada vez mais reduzida e desacreditada, junto com o poder público, é muito ruim para todos nós”.

Nesse sentido, Marcele enfatiza que “a FGM deveria compreender isso antes de descumprir a própria legislação pertinente. Não há a mínima previsão  legal que dê respaldo a essa “transferência” de estudos e documentos da FGM para o IPAC. No mínimo, obedecendo às leis 8.550 de 2014 e decreto regulamentar 27.179 de 2016, poderia caber à FGM indeferir o pedido de tombamento e disso ainda caberia recurso”.

– Como ficam, por exemplo, os proponentes do pedido de tombamento? E quanto à notícia de que o IPAC abriu processo de tombamento só do Parque das Dunas, a FGM não se “sente” responsável por isso? Deveria citar a legislação que embasou toda a argumentação. Porque eles têm dever público, não quero individualizar o ato, pois este pertence à instituição FGM. Essa fala, informando da transferência do processo para o IPAC é de uma servidora e me parece que ela se arriscou a falar por si, extraoficialmente, avaliou.

PARQUE DAS DUNAS TEM TOMBAMENTO PROVISÓRIO

Marcele do Valle contraria por inteiro o posicionamento da FGM. Segundo ela, “não existe nenhum impedimento para um ente tombar patrimônio sob gestão de outro. Essa é uma compreensão a respeito da hierarquia verticalizada, ou seja, de que um não poderia tombar patrimônio de outro, interpretação que já tem decisão desfavorável no STF. E olha que a ação que negou esse entendimento enfrentou a legislação federal que tem dispositivo quanto a desapropriação, mas aqui no estado e no município nem há  tal exigência”, arguiu.

Não. A FGM não respondeu o porquê de ter mudado a postura e o andamento do tombamento, não mais que de repente, e com transferência do processo para o IPAC. Não, o órgão estadual também não respondeu às perguntas encaminhadas. No Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, a única informação obtida é a de que o órgão já implementou o “tombamento provisório” do Parque das Dunas, área circundante do Parque do Abaeté.

POLIGONAL, COM OU SEM OCUPAÇÕES?

Marcele do Valle é ainda mais pertinente quando questiona, a propósito, se as ocupações foram retiradas da proposta de poligonal do tombamento. Milena alega que havia dezenas de ocupações e que isso criaria problema na notificação. Do Valle entende que a alegação “não é verdade”:

“A instrução do processo que inclui definição da poligonal é atribuição da FGM. Então, a própria FGM já havia feito essa solicitação de fazer uma poligonal sem as ocupações”. Quanto ao município atuar de maneira complementar junto ao IPAC e Iphan, Marcele novamente ressalta que “a FGM deveria apontar a lei que toma por base”. E cita artigos da Constituição Estadual para demolir tal entendimento:

Art. 59 – Cabe ao Município, além das competências previstas na Constituição Federal:

VII – Garantir a proteção do patrimônio ambiental e histórico-cultural local, observada a legislação federal e estadual;

IX – Legislar, em caráter suplementar, para adequar as leis estaduais e federais às peculiaridades e interesses locais.

Parágrafo único – O Município exerce, no âmbito de seu território, as competências comuns com a União e o Estado, previstas na Constituição Federal e nesta Constituição.

PROPONENTES E FORMAÇÕES LACUSTRES

O pedido de tombamento ao Município de Salvador foi assinado pelo Fórum Permanente de Itapuã, Abaeté Viva, Guardiões do Abaeté, Ganhadeiras de Itapuã, os Terreiros Abassá de Ogum e Ilê Axé Oba Iju Inã, Colônia de Pesca Z-6, os movimentos Nosso Quilombo e Jaguaribe Vivo, Programa Raízes dessa Terra, Associação Quilombola Kingongo do Quilombo Kingoma, GT Pedra de Xangô, Projetos Parques em Conexão e pelo Instituto Búzios.

A Lagoa do Abaeté é um dos ícones mais sagrados de Itapuã, havendo diversas lendas a seu respeito. Por muito tempo, a lagoa foi uma das principais fontes de renda das pessoas do bairro, que a usavam para pescar e lavar roupas, além de ser um lugar onde até hoje acontecem diversas manifestações artísticas e religiosas. A lagoa tem águas escuras em forma de um funil.

Segundo moradores, possui diferentes níveis de temperatura que não se misturam: em cima, a água tem temperatura natural; no meio, a água é quente e, no fundo, é gelada. Seu fundo, formado por sedimentos e areia, costuma ser descrito como “pegajoso”. Antes, a Lagoa era rodeada por frondosos cajueiros e outros tipos de árvores que foram desmatadas com o tempo. Devido às construções que começaram a ser erigidas em seu entorno e à mudança do seu ecossistema, a Lagoa tem diminuído de tamanho progressivamente.

Além da Lagoa do Abaeté, outras famosas na área são: a Lagoa Dois-Dois, uma lagoa temporária que apresenta água transparente, a Olhos D’Água e a Cacimba, que viraram posteriormente nomes de rua, e a Barragem, que era a antiga fonte de água potável para a região. Outras lagoas são: Urubu, Abaeté – Catu, do Toco, das Trincheiras, dos Pombos, das Casas, do Core, da fonte da Praia, dos Milagres e do Canal.

Destaque
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Detalhe do condomínio “Parque Tropical”, erguido pela Odebrecht em área do Parque de Pituaçu

 Albenísio Fonseca

Maior reserva ecológica de Salvador – e com remanescentes da Mata Atlântica em seus 453 hectares – o Parque Metropolitano de Pituaçu, no coração da orla oceânica da capital, está “em fase de estudos de viabilidade técnica” para ser concedido à iniciativa privada pelo governo do Estado. Originalmente, vale dizer, em 1973, quando da inauguração pelo governador Roberto Santos (PMDB), a área dispunha de 660 ha. A redução da poligonal foi efetuada no final da administração Paulo Souto (então no PFL), em 2006, a exatos 15 dias de entregar o cargo. 

Último dos equipamentos públicos da cidade a ser reaberto para visitação pública, em decorrência das restrições sanitárias provocadas pela Covid-19, o parque tem ambiência paradisíaca, mas vive cercado de problemas por todos os lados. As maiores ameaças em Pituaçu envolvem poluição das águas da lagoa e do rio de mesmo nome – com estimativa de, “ao menos, 35 mil pontos de lançamento de esgotos”, impedindo a pesca e o banho para frequentadores – além da questão fundiária em áreas sob ocupações irregulares.

A duplicação da avenida Pinto de Aguiar e a construção da avenida Gal Costa, em limites do parque, geraram impactos como assoreamento e tamponamento de trechos do rio Pituaçu, além da canalização da água pluvial para o parque. Estimativas de revitalização do rio alcançavam R$ 36 milhões, há seis anos. Uma estação de tratamento de esgoto, instalada sob estação do metrô na avenida Paralela, já não atende à capacidade e tem transbordado, atingindo o rio que alimenta a lagoa.

A Embasa-Empresa de Água e Saneamento da Bahia, em Nota Técnica datada do último dia 7 de fevereiro, garante “não ser possível estimar os custos reais para retirada das plantas aquáticas, em função de não conseguir identificar área próxima para disposição da biomassa úmida” que, por visível má gestão do parque, “tem 50% do espelho d’água da Represa de Pituaçu recoberto por plantas da família macrófitas”. Ainda em fevereiro, o esgoto em que foi convertido o rio arrebentou trecho da ciclovia que circunda o parque metropolitano, surpreendendo ciclistas.

A represa que permitiu a formação da lagoa foi construída em 1906 pelo engenheiro Teodoro Sampaio. O propósito era criar um manancial de abastecimento para a capital baiana, o que de fato ocorreu, alcançando até o bairro do Rio Vermelho em meados dos anos 70.

Odebrecht comprou e não pagou

Como se não bastassem as “demandas naturais”, veio à tona denúncia sobre a venda de terrenos, subtraídos da poligonal, em medidas que reduziram a área do parque em milhares de metros quadrados. Foram comercializados pelo governo da Bahia, na gestão de Jaques Wagner (PT), com valores discrepantes, 3 mil m², à Sanave, por R$ 9 milhões; e outros 26 mil m², à OR-Odebrecht Realizações Imobiliárias, por R$ 10 milhões. Wagner anunciou, recentemente, a decisão de não concorrer a um terceiro mandato para governar o estado, transtornando o processo sucessório local.

A denúncia, de estarrecer, é a de que o Grupo Odebrecht (que mudou o nome para Novonor) até esta data não efetuou o pagamento do montante, embora tenha consolidado no terreno a construção de um mega condomínio com oito torres, divididas em três subcondomínios, com 11 mil m² de área verde e 34 m acima do nível do mar, desde 2012 e à revelia do poder público. Os apartamentos, de 3 e 4 suítes, medem, respectivamente, 113 m² e 155 m².  À época, foram comercializados por cerca de R$ 800 mil, o mais barato, e até R$ 3 milhões, as coberturas.

Após 15 dias, em meio a joguetes de uma secretaria para outras e sob “silêncio tumular” do Inema-Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, órgão responsável pela administração do parque ambiental, finalmente a PGE-Procuradoria Geral do Estado, após várias negativas, através da procuradora-Geral Adjunta, Bárbara Camardelli, admitiu que “a empresa Odebrecht não pagou e não compareceu à celebração de pré-acordo destinado a solucionar o pagamento da área”.  Camardelli acrescentou que “medidas adequadas se encontram em elaboração para a devida recomposição do patrimônio público, inclusive com ajuste dos valores”. A procuradora deixou claro que “a PGE ainda não moveu ação contra a empresa”. Ela considerou “uma coincidência, justo nesse momento que preparamos a ação judicial”, a abordagem da reportagem sobre o calote aplicado pela Odebrecht.

Camardelli se recusou a adiantar qualquer outra informação, até mesmo a data constante no “pré-acordo”, sob alegação de que “qualquer alusão ao conteúdo da peça pode comprometer a defesa”. De todo modo, estipulou que “até segunda-feira (21) já teremos dado entrada na ação junto ao Tribunal de Justiça da Bahia”. Assegurou, também, que “a medida exigiu contratação de empresa privada que já procedeu a avaliação pericial sobre o terreno, objeto da questão”.  Salientou, ainda, que “para consolidar a venda foi necessário alterar a legislação através da Assembleia Legislativa”. Sem outro recurso, a PGE reconhece, do mesmo modo, a “existência de diversas ações movidas quanto a particulares em ocupações ilegais”.

Do outro lado, os telefones de contato da OR permanecem “em caixa”, não são atendidos ou não concluem a ligação.  A propósito, o condomínio “Parque Tropical”, como passou a ser denominado, tem área maior que a estimada na “venda” pelo governo da Bahia. Enquanto o Estado menciona 26 mil m², a empresa “comercializa o paraíso” em 32 mil m², como se diria de um, ainda mais gracioso, bônus de 6 mil m². 

Entrada do Parque Tropical, nome adotado pela Odebrecht após reação de tropicalistas

Reação dos tropicalistas

Primeira subsidiária do grupo a mudar de nome, dentro da estratégia de desvincular a imagem dos processos e condenações impingidos pela Operação Lava-jato, a OR-Odebrecht Realizações Imobiliárias teve que alterar, também, o nome inicial do empreendimento – “Tropicália” – após os cantores e compositores Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, ícones do Tropicalismo, rejeitarem a homenagem e, sem acordo, recorrerem à Justiça.

Os prédios também seriam denominados com alusões a canções dos tropicalistas, como “Alegria alegria”, “Divino maravilhoso” e outras.  Como enfatizaria, então, a advogada de Veloso, Simone Kamenetz, “ferindo princípios dos artistas em não comercializarem suas criações para efeito de marketing de produtos”.

Apropriação indébita e transparência à parte

No último sábado (5.03) venceu o prazo de 10 dias determinado pela Justiça para que a família de Eliete Magalhães (viúva de José Magalhães, irmão do também já falecido ex-governador Antônio Carlos Magalhães) entregasse um amplo terreno no Alto do Andu, em território do parque, por apropriação indébita, em vitória judicial do governo baiano. Já um Grupo Técnico criado na Casa Civil para desenvolver soluções às posses irregulares limitou-se à única ação de consolidar invasão de moradores na Vila Nicuri, impedindo novas ocupações. Com um primor de transparência, a Casa Civil nega a existência do GT.

Outras áreas da reserva ambiental também foram vendidas pelo governo na segunda gestão do petista. À Queiroz Galvão, que construiu o condomínio “Hemisphere 360º” com 12 torres de 3 e 4 suítes, em 40 mil m², com frente para o parque e vista-mar, sem que fosse possível identificar o valor obtido pelo governo na transação. Do mesmo modo, mas sem que se disponha da delimitação de área, vendeu, ainda, terreno já devastado pela  Delta Engenharia, por R$ 20 milhões, e a empresa, agora, até especula devolver o espaço ao patrimônio público, mas “por R$170 milhões”.

Alberto Peixoto, coordenador de Articulação Comunitária, sob o pórtico do novo atrativo do parque

Trilha Sensorial, novo atrativo

Na contramão da iniciativa de privatização do equipamento pelo governo Rui Costa, um dos responsáveis pela administração do parque, José Alberto Peixoto, coordenador de Articulação Comunitária, comemorava “um sonho de 10 anos” ao nos fazer percorrer os 800 m do mais novo atrativo do equipamento de lazer, a “Trilha Sensorial”.

Destinada a crianças e jovens, e construída em terreno ocioso na margem da lagoa, em frente ao bicicletário que, vale frisar, segue desativado desde o início da pandemia, em 2020, por conta das restrições sanitárias. Na trilha, se atravessa diversos tipos de solo (terra, barro, areia, pedras), podendo identificar árvores frutíferas e outras plantas, cujos nomes estão exibidos em placas de madeira. A pequena mata permite o prazer da contemplação imerso na natureza, e um novo desejo de Peixoto está confirmado: inserir um anfiteatro no local. Os recursos provêm de multa aplicada ao Senai Cimatec por prédio construído em área do parque.

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Jaques Wagner, em 2013, após assinar Ordem de Serviço para contemplar acesso de cadeirantes ao parque

Há, ainda pendentes, R$ 15 milhões destinados, em 2013, por Jaques Wagner, em Ordem de Serviço, para recuperação da ciclovia de 15 km e cercamento de toda a área do parque, mas a intervenção ficou restrita à construção de uma pista de acessibilidade à lagoa. A obra sequer foi concluída para contemplar cadeirantes.

Além da fauna e flora diversas, de obras do artista Mário Cravo Jr., e do bairro no entorno, o parque abriga diversos equipamentos, sem dispor, contudo, de contrapartidas. São os casos do Museu de Ciência e Tecnologia, do Estádio Roberto Santos, Cetra-Centro Especial de Tratamento de Animais Silvestres, Coppa-Companhia de Polícia de Proteção Ambiental, Polícia Especial de Eventos e unidades da UCSal-Universidade Católica de Salvador. A segurança do parque é feita por empresa privada. O pórtico de entrada, onde Cravo exibia esculturas de “Cristo crucificado” e a oficina do artista estão relegados ao descaso e a estrutura de concreto, no caso do pórtico, sem manutenção e sob desgaste da ação do salitre. O custo de manutenção mensal do equipamento é estimado em R$ 300 mil.

Governo da Bahia que conceder
cinco parques à iniciativa privada

O Governo da Bahia aderiu ao Programa de Concessão de Parques Naturais do Governo Federal, visando conceder à iniciativa privada cinco Parques Estaduais: Zoobotânico, Pituaçu e São Bartolomeu, em Salvador, além de Conduru e Sete Passagens no interior do Estado. O Programa conta com financiamento do BNDES que, contratado pelo Estado da Bahia, subcontrata empresas para realizar a modelagem econômica do processo de concessão e seus respectivos editais de licitação.

Os Parques Zoobotânico, Conduru e Sete Passagens já tiveram Consultas Públicas realizadas de forma remota, sob veementes protestos das respectivas comunidades do entorno e também da sociedade civil organizada das cidades onde se situam: Salvador, Ilhéus e Miguel Calmon. Fundamentada em aspectos legais da Constituição Federal, acordos internacionais firmados pelo Brasil e na própria Política Ambiental do Estado da Bahia, a comunidade de Miguel Calmon entrou com Ação Civil Pública no Ministério Público da Bahia solicitando a anulação do processo de concessão do Parque das Sete Passagens.

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Oficina e peças de obras artísticas de Mário Cravo Jr. permanecem abandonadas
no interior do parque após a morte do artista em agosto de 2018

Audiência Pública está prevista para dia 24

Em Pituaçu não é diferente. “Apesar de ainda não ter sua modelagem econômica concluída, segundo informações da SEMA – Secretaria de Meio Ambiente do Estado da Bahia para realização da Consulta Pública, a comunidade, grupos organizados e o Conselho Gestor do Parque já se mobilizam no sentido de não permitir o avanço dessa estratégia privatista do governador Rui Costa”, diz o conselheiro Paulo Canário. Segundo ele, “uma Audiência Pública conduzida pela Frente Parlamentar Ambientalista da Bahia, na Assembleia Legislativa do Estado, está prevista para o próximo dia 24, de forma a estabelecer uma escuta ativa e apoiar o movimento da comunidade contrária à concessão”.

Conforme Canário, “diversos estudos, pesquisas, rodas de conversas com especialistas, contatos com outras Unidades de Conservação já concedidas, debates no âmbito do Conselho Gestor do Parque com a SEMA e o INEMA, inclusive não aceitando interlocução com os técnicos do BNDES, já foram realizados como forma de levar conhecimentos e esclarecimentos à comunidade do entorno do Parque de Pituaçu”.

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Com a lagoa contaminada por esgotos e invadida por vegetação,
atividades de lazer estão restritas no Parque de Pituaçu 

As alegações da comunidade

Entre os motivos que levam a comunidade a “rechaçar, veementemente, a concessão”, Canário menciona “a possibilidade real da cobrança para acesso ao parque, hoje gratuito; perda do espaço e de renda na comercialização de diversos produtos hoje vendidos na área do Parque; impedimento para desenvolver atividades culturais, artísticas, educacionais (inclusive ambientais) e de lazer no local, hoje oferecidas gratuitamente à comunidade e à população de Salvador.

O conselheiro cita, ainda, a “proibição do uso pelas religiões de matrizes africanas que cultuam sua ancestralidade e fé na área do parque; impossibilidade de uso para subsistência por parte de algumas pessoas da comunidade pela retirada de frutas nativas e peixes da lagoa; perda de cobertura vegetal original da Mata Atlântica devido a usos indevidos e construções no âmbito da poligonal (facilitadas por um licenciamento ambiental flexível para o investidor); perda de identidade da comunidade com o parque, vinculado à formação das famílias das comunidades do seu entorno; gourmetização do espaço público, natural, com relativo estágio de preservação da sua biodiversidade, mas sob  contribuição negativa para a mudança do clima hoje já sentida na cidade”. 

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Jornalista, editor-executivo da Editora Boa Ideia e autor de “Jornalismo Cultural em Transe – Épocas em Cena” (2017)albenisio@gmail.com

Destaque

“Cuíca de Santo Amaro, Ele o Tal”, para além de um documentário

Albenísio Fonseca

Com imagens de Salvador e do Recôncavo dos anos 30, 40 e 50, além das contemporâneas e sob depoimentos de personalidades políticas e culturais da Bahia, o extraordinário documentário “Cuíca de Santo Amaro, Ele o tal”, proporciona um resgate fundamental da história da cidade, antes da sua consolidação como metrópole e  a estampar o seu mais emblemático comunicador.

 

Cuíca de Santo Amaro – como enfatiza o texto de apresentação do documentário, escrito e dirigido pelos cineastas Joel de Almeida e Josias Pires – “deixa um legado picante e irônico da vida baiana. Versos como vísceras de uma cidade emprenhada de preconceitos e hipocrisia”.

 

A obra dele, ainda segundo Joel e Josias, “é como um jornal do povo, o melhor da tradição jornalística da literatura popular”.

 

Trazendo à tona episódios e dados relevantes sobre a primeira capital do país, nas primeira e segunda metades do século 20, a exemplo da invasão de automóveis no pós-guerra, a adotar o modelo de desenvolvimento americano como um novo “colonialismo”; a descoberta do petróleo na Bahia e o incêndio da Feira de Água de Meninos, entre outros fatos sob a égide da ótica desse fabuloso poeta cordelista, o documentário foi finalizado em 2012 e disponibilizado no YouTube em 2018, como se diria de cenas de época, em inédita e marcante “arqueologia” da história da Bahia.

Destaque

SOB O SIGNO E O SANGUE DAS BALEIAS


Pesca da baleia nas proximidades do farol de Santo Antônio da Barra. Gravura em
metal de Hippolyte Taunay, na obra “Le Brésil, ou Histoire, Moeurs, Usages et Coutumes
des Habitans de ce Royaume; Paris, 1822.
Extraído de Iconografia brasileira: Coleção Itaú – Contra Capa Livraria, 2001, p.158.

Albenísio Fonseca

Imagine Salvador e vilas do Recôncavo iluminadas durante os séculos XVII e XIX. À noite, as ruas têm os lampiões acesos e, nas residências, as luminárias flamejam. Mas qual combustível era esse que permitia tamanha luminosidade? Sim, concomitante aos ciclos econômicos dos períodos colonial (1500-1822) e imperial (1822-1889) proporcionados pela exploração do pau-brasil e das plantation de cana-de-açúcar e café, como nas minerações de ouro – o ciclo da pesca da baleia na Costa brasileira, notadamente na Baía de Todos os Santos, é um fato histórico da expansão exportadora que, embora de alta relevância, permanece submerso ou à deriva, relegado a parcas abordagens dos nossos historiadores.
A pesca das baleias e seus filhotes, por 300 anos – entre barcos fundeados na Baía – à média de, pasme, 200 animais por ano e 10 mil litros de azeite por exemplar, consistia em dramático e trágico espetáculo assistido das balaustradas dos sobrados, subidas de morros, montanhas e praias, de onde se contemplava o embate excitante e o transbordar nas águas do sangue do pescado. Não raras vezes, estarrecidos com o naufrágio das embarcações e seus tripulantes, vencidos pela força do maior animal do planeta.
Na praia de Manguinhos (Itaparica) ao término do esquartejamento de uma baleia. Junto
da ponte vêem-se os ossos amontoados em grande extensão. As mulheres, ganhadeiras,
carregam cestos de carnagem, por entre os cães ocupados com o seu farto quinhão.
Cliché de J.S. Tavares, 1916
Arpoadas e rebocadas à praia ou às armações, as baleias eram retalhadas e delas extraídos os subprodutos. A carne, tida como ordinária, além de distribuída gratuitamente à gente pobre do lugar, era geralmente destinada a alimentar os escravos trabalhadores das armações e vendida às ganhadeiras, que as salgavam, moqueavam e saíam vendendo pelas ruas de Salvador e vilas do Recôncavo. Os ossos, empregados em obras ou suportes para lavagem de roupa. À beira mar, restos do “monstro” permaneciam fétidos.
A pesca da baleia consolida-se no século XIX como um sistema ecologicamente devastador para a produção do óleo ou azeite, extraído da gordura do cetáceo e que viabiliza por três séculos o combustível gerador da iluminação das cidades e residências, não só nesta capital e seus arredores como em Pernambuco, São Paulo, Rio, Santa Catarina e cidades europeias. A atividade foi introduzida na Bahia, nos primeiros anos do século XVII, quando da denominada União Ibérica – de Portugal e Espanha – entre 1580 e 1640. O rei Felipe III, em 9 de agosto de 1602, autoriza dois estrangeiros, os biscainhos (ou bascos) Pêro de Urecha e seu sócio Julião Miguel, a pescarem baleias nas costas brasileiras, pelo prazo de dez anos

Diversas técnicas eram empregadas para a caça do mamífero por exímios pescadores.
Foto: Bona Beding/Mail Online
Exímios pescadores de baleia, após as capturas do mamífero aquático, processavam a gordura em bases cujas localizações nunca foram identificadas, nessa exploração, e retornavam à Espanha levando o azeite do peixe e gêneros da Colônia. Antes, porém, abasteciam o Recôncavo com o combustível, conforme acerto em contrato. Entre 1602 e 1612, todavia, a Câmara Municipal de Salvador estimula a pesca do cetáceo junto aos habitantes da cidade. O episódio traz sérios prejuízos àqueles empreendedores, por conta do aumento da “produção caseira” de um azeite de baixa qualidade, resultando consequentemente em queda nos preços. Como decorrência, os biscainhos perdem o interesse em continuar pescando os cetáceos nas águas brasileiras.
ARMAÇÕES EM ITAPARICA E SALVADOR
As armações da pesca da baleia foram empreendimentos dedicados à captura desses cetáceos e ao beneficiamento de suas partes. Eram aparelhados com edificações, equipamentos e mão-de-obra, ficando sua atividade a mercê da sazonalidade das migrações das baleias junto à costa. No Brasil, a pesca da baleia teve início do século XVI, no Recôncavo da Bahia, mais precisamente na Ilha de Itaparica.
Ao longo do processo de colonização, de modo concomitante as atividades dos engenhos de açúcar, a atividade pesqueira foi lucrativa em Itaparica. No século XVI foram construídas armações na Ponta de Itaparica e na Ponta da Cruz, sendo, posteriormente, edificadas outras em Manguinhos, Porto Santo, Gamboa e Barra do Gil, segundo relatório produzido para o Iphan-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional pela professora e doutora Fabiana Comerlato.
Segundo a pesquisa, “Na Bahia, os ossos de baleia serviam para fazer pentes, caixinhas, botões e bancos. Os banquinhos eram usados no tratamento médico, acreditava-se que estes assentos eram recomendados aos pacientes de reumatismo. Em Itaparica, as vértebras eram usadas para fazer cadeiras e as omoplatas para mesas e para artesanato e confecção de bancos e cadeiras como relatam os entrevistados. Outros ossos eram lançados ao mar em determinados lugares para atrair peixe, tem-se o relato da existência de um pesqueiro feito de osso em Itaparica ainda em uso pelos pescadores locais”.

Recôncavo da Bahia com a indicação dos sítios baleeiros da Ilha de Itaparica.
Adaptado de Myriam Ellis.
O estudo revela, também, que “o óleo de baleia se prestava para outro uso no Brasil – o farmacêutico. O óleo purificado servia para beber e era considerado um depurativo para o sangue, sobretudo, dado as crianças. Este óleo preparado em emulsões também era conhecido como óleo de fígado de bacalhau, apesar de ter sido feito com óleo de baleia. Na Bahia, o óleo era usado como remédio, se passava nas feridas, no cabelo e até era ingerido para combater doenças brabas“.
Na capital, Antonio da Costa obteria o primeiro contrato de concessão para pesca da baleia e exploração dos seus derivados, em 1614. Detentor do monopólio, expande a atividade por todo o litoral da cidade. Instala armações na Pituba, no Rio Vermelho, nas proximidades do Forte de Santo Antônio da Barra, na Pedra Furada, em Itapagipe e em Itapuã. As armações consistiam em estrutura com embarcações, fábrica, alojamentos, armazéns, fornalhas, tanques, caldeiras, escravos, terras, apetrechos de pesca e as de manufatura do azeite.
Conforme minucioso estudo de Myriam Ellis, “A pesca da baleia no período colonial” (Ed. Melhoramentos, 1ª edição, 1959) – em todas as armações do litoral brasileiro predominava mão de obra escrava. As maiores indústrias de óleo chegavam a empregar mais de uma centena de cativos, além de trabalhadores livres, a labutar dia e noite em fornalhas que derretiam o espesso toucinho do animal. Findo o monopólio, as armações da Bahia, em Itaparica e Itapuã, são vendidas a particulares que continuaram a pescar baleias nas águas da Baía de Todos os Santos. As existentes no Sul do Brasil foram tomadas pela Coroa Real e desastrosamente administradas. Ao oferecê-las em concessão a particulares, 15 anos depois, já não encontraria interessados.

Americanos e ingleses desenvolveram tecnologia para extrair o azeite no interior das próprias embarcações
Afora a escassez da espécie, pela pesca predatória, havia a concorrência estrangeira. Americanos e ingleses desenvolveram tecnologia para processar a gordura e extrair o azeite no interior das próprias embarcações, em alto mar.
O fim do ciclo decorre da descoberta do petróleo, em 1859, tornando o querosene como novo combustível para iluminação. Resta-nos, contudo, em Itapuã, alegorias das baleias a festejar a influência da pesca na formação social e econômica de Salvador.
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Publicado originalmente em “Itapuã na Frente”, nº 3.
Destaque

Salvador, sob a marca das epidemias devastadoras

Nenhuma descrição de foto disponível.Capa de O Imparcial em 11.10.2019
“Epidemias não são eventos apenas biológicos, mas profundamente sociais,
políticos e culturais, que tanto podem aprofundar hierarquias, desigualdades,
conflitos e preconceitos como produzir compaixão, solidariedade e cuidados”
.
Charles Rosenberg

Salvador foi sede do governo geral do Brasil colonial até 1763 e ao longo do século XVIII manteve o posto de cidade mais populosa do Brasil. No contexto das doenças que emergiram, reemergiram ou permaneceram ao longo dos séculos, o porto de Salvador teve sempre um papel crucial.

O porto servia como entreposto de todo tipo de mercadoria trocada no âmbito do império português. Como maior produtor de açúcar da colônia, Salvador tanto recebia produtos vindos da metrópole, quanto escoava a produção agrícola da região.

As atividades portuárias na cidade iniciaram-se ainda como simples embarcadouro comercial, antes mesmo do governo português estabelecer que ela seria a sede do governo geral do Brasil (meados do século XVI), e foram crescendo junto com a cidade, mesmo após a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1763.

Com a intensificação das atividades portuárias em Salvador seguiram-se a colonização de algumas espécies de animais na área dos portos, atraídos pela facilidade de abrigo e alimentação (principalmente pelos resíduos sólidos resultantes dessa atividade), como roedores, baratas, pombos, os quais se constituem em uma fauna sinantrópica nociva.

Animais sinantrópicos são aqueles que se adaptaram a viver junto ao homem, a despeito da vontade deste. Diferem dos animais domésticos, os quais o homem cria e cuida com as finalidades de companhia (cães, gatos, pássaros, entre outros), produção de alimento ou transporte (galinha, boi, cavalo, porcos, entre outros).

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1897 – 1904, VARÍOLA FAZ MAIS DE 2 MIL MORTOS

A despeito da memória coletiva sobre a doença, epidemias com altas taxas de morbidade e mortalidade atingiram a capital do estado em anos que nem sempre terminavam em nove. Uma das mais graves irrompeu em 1897, quando 4.575 pessoas foram acometidas pela varíola e 1.676 foram a óbito. As taxas continuaram altas no ano seguinte, foram 780 casos e 168 óbitos em 1898.

Entre 1899 e 1903, o número de adoecimentos e mortes foi relativamente pequeno, até que, a partir de 1904, as cifras de morbidade começaram a crescer, mas a mortalidade continuou relativamente baixa. Após um período curto de declínio da varíola, em 1909, as taxas de morbidade e mortalidade recomeçaram a crescer, atingindo as cifras de 328 mortos e 1.813 doentes naquele ano. Mas em 1910, essas taxas atingiram graus mais elevados: 2.697 casos e 835 mortos. A partir de 1911, os números começaram a decrescer até que, em 1919, irrompeu a epidemia de varíola mais devastadora que a Bahia conheceu: entre junho e dezembro daquele ano, 4.612 pessoas foram acometidas e 2.804 foram vitimadas pela doença.

1918 – 1919, GRIPE ESPANHOLA E A EPIDEMIA DE VARÍOLA

Mal descansara das turbulências causadas pela gripe espanhola no final de , Salvador se depararia com uma terrível epidemia de varíola. O biênio de 1918-1919 foi particularmente desastroso para a saúde dos soteropolitanos. Não por acaso, o número de habitantes em Salvador passou dos 348.130, computados em 1912, para os 283.422 registrados pelo censo de 1920. O impacto demográfico produzido pelo alto índice de mortalidade por doenças
transmissíveis em Salvador demonstra quanto tais epidemias foram significativamente letais.

A epidemia de gripe espanhola irrompeu em Salvador entre setembro e dezembro de 1918. No ano seguinte, a população foi atingida por uma epidemia de varíola. Em paralelo, os jornais também registraram surtos de febre amarela. Contudo, apesar de a imprensa noticiar tais surtos, nos registros oficiais o número de casos era insignificante, fazendo com que o governo estadual extinguisse o serviço especializado.

Durante muito tempo, a varíola se constituiu em ameaça real para os soteropolitanos, a ponto de ter sido usual a expressão: “na Bahia anno de nove, anno de varíola”. Este adágio popular mereceu destaque na mensagem enviada à Assembleia Legislativa, em 1930, pelo governador Vital Soares, que fez questão de destacar que, apesar do número, o ano de 1929 passou sem que irrompesse uma epidemia de varíola em Salvador.

Em junho de 1919, alguns soldados do exército que regressavam de uma expedição, provenientes da cidade de Barreiras, chegaram a Salvador apresentando sintomas da varíola. Internados no Hospital Militar, logo foram seguidos por outros, acometidos pela mesma doença.

No mês seguinte a varíola atingiu os bairros de Brotas e do Pilar, sendo notificados 17 casos. Em agosto, mês aziago, a doença começou a alastrar-se pela cidade. Infectou, inicialmente, os moradores dos distritos centrais – Paço, Taboão, Santo Antônio, Santana e Sé – alcançando, depois, até mesmo localidades no subúrbio de Salvador.

HABITAR CASARÕES OCUPADOS NO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR, BAHIA ...



Condições de moradia eram extremamente insalubres

 

 

 






FATORES DETERMINANTES, AS CONDIÇÕES SOCIAIS

Vários fatores podem ter contribuído para a rápida disseminação da doença, dentre esses, as condições sociais em que vivia a camada mais pobre da população de Salvador, vítima da crise habitacional e da especulação imobiliária em curso naquele decênio. A reforma urbana e a expansão do setor de serviços contribuíram para aumentar a carência de imóveis nos distritos centrais da cidade.

Assim, os desprovidos de recursos pecuniários, em busca de baixos preços de aluguéis ou de maior proximidade com o trabalho, se aglomeravam nos velhos sobrados encortiçados, sobrelojas e casas de cômodo, situados no antigo centro de Salvador. Outros, especialmente os operários, disputavam espaço nos casebres e “avenidas” dos bairros fabris da periferia da cidade.

Reportagem veiculada em setembro daquele ano no jornal A Tarde informava que, no Paço, Pilar e Taboão, havia, no mínimo, um doente por casa. A Saúde Pública permitia que os acometidos fossem tratados em domicílio, desde que notificassem o inspetor sanitário do distrito e respeitassem as regras de higiene recomendadas, mas, segundo o articulista, condições como essas dificultavam o registro preciso do número de casos.

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A matéria informava ainda que 160 doentes de varíola encontravam-se internados no Hospital de Isolamento. Naquele mês o hospital ainda possuía capacidade para acolher mais enfermos, visto que contava com um total de 200 leitos. Caso se decidisse pela internação, os parentes do enfermo poderiam acompanhá-lo mediante o pagamento de diária estipulada pela Saúde Pública.

Segundo nota divulgada no jornal O Democrata, órgão de imprensa do grupo político que estava no poder, a Diretoria Geral da Saúde Pública estava fazendo sua parte para conter a epidemia. As medidas praticadas eram as de praxe: a vigilância e notificação dos casos; o bloqueio da doença, através da vacinação; o isolamento os doentes; a desinfecção e incineração das roupas do enfermo.

CENÁRIO MACABRO, DOENTES INFESTAVAM AS RUAS

Todavia, apesar de todos os esforços do governo do estado, em 24 de outubro, a primeira página do jornal O Imparcial estampava uma manchete inquietante: “Varíola! Varíola! A epidemia assume proporções horríveis. O isolamento transborda – os variolosos infestam as ruas”. A matéria informava que inúmeros doentes continuavam em suas residências sem os devidos cuidados. Como não havia leitos suficientes no Hospital de Isolamento para acolher todos os enfermos, muitos eram vistos perambulando pelas ruas e praças públicas da cidade.

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O quadro descrito nos jornais era macabro: doentes estendidos nas sarjetas, expondo as pústulas, impudicamente, “á luz do sol e á vista de todos” [sic] ou a gemer e a tossir, desesperadamente, sob as árvores dos jardins públicos, nos adros das igrejas, abrigando-se até nas escadarias das residências particulares.

Notícias como esta figuravam nas páginas de outros jornais da capital e revelavam a repulsa que exposição das vesículas, pústulas e crostas por todo o corpo do doente provocava, como também o medo do contágio e da morte, sentimentos próprios dos períodos de epidemias.

A doença, que desfigurava e vitimava familiares, amigos, colegas de trabalho, vizinhos de rua ou do bairro, constituía-se em uma ameaça próxima, concreta. Todavia, nem sempre a repugnância pelos sinais externos da doença, e o medo do contágio, próprio da necessidade natural de autopreservação, eram impedimentos para que as pessoas exercessem atos caritativos ou de solidariedade humana.

Em novembro, o estado era de calamidade pública. Em matéria publicada no jornal O Imparcial no dia 4 daquele mês, um articulista calculava que em apenas três dias haviam morrido cerca de 100 pessoas. Em vão, as pessoas solicitavam à Saúde Pública a retirada dos doentes de suas casas, já que o hospital não tinha mais capacidade para acolher mais doentes.

Houve dia de ali se encontrarem internados 540 doentes, com uma média de 25 internamentos por dia. O antigo lazareto também não dispunha mais de leitos, visto que 150 doentes já ocupavam os disponíveis. Além desses espaços, o governo do estado instalou uma enfermaria provisória na Rua do Baluarte. Em finais de outubro o jornal O Imparcial informava que o governo estadual cogitara adquirir uma casa no Largo da Boa Viagem para transformá-la em hospital, mas a informação não se confirmou.

Desnorteados, enfermos perambulavam pelas ruas, cadáveres amontoavam-se nas casas e nas vias públicas, sem transporte para levá-los às valas onde deveriam ser sepultados. Nota publicada no Diário de Notícias informava que pessoas que viajavam nos bondes da Calçada denunciavam que continuamente podiam ser vistos, ao abandono dos leitos das linhas dos bondes, cadáveres originários dos bairros do Alto do Peru, de São Caetano e de Pirajá. Esses bairros estavam situados na periferia da cidade e eram habitados, em maioria, por gente sem recursos, cujos mortos ali ficavam aguardando o transporte que os levaria ao cemitério.

Determinava a legislação que, em casos de óbito por doença infectocontagiosa, os ritos que acompanhavam a passagem para a outra vida deveriam ser suprimidos, o sepultamento deveria ser feito com rapidez e discrição, sendo proibido o acompanhamento do defunto por parte de amigos e familiares. O artigo 52, da Lei n. 1231 de 31 de agosto de 1917, estabelecia que transporte e sepultamento do féretro seguiriam as “devidas precauções” para evitar a possibilidade dos cadáveres “transmitirem ou dispersarem germens ativos de moléstias contagiosas”.

No cemitério das Quintas dos Lázaros, o movimento de carros  e bondes funerários era intenso. Às vezes, nem bem se tinha descarregado um caminhão com cadáveres de variolosos, chegava um bonde com outro tanto para sepultar. Os coveiros cavavam uma média de 40 a 50 covas por dia que, tão logo ficavam prontas eram imediatamente ocupadas. Houve ocasião em que o número de sepultamentos superou a média: 68 inumações.

Diante do número crescente de óbitos, os coveiros varavam a madrugada, mesmo assim, houve dia em que, pela manhã, os jornalistas que documentavam a epidemia flagravam cadáveres que ainda estavam insepultos e já em estado de decomposição. Para agravar o quadro, os coveiros, cujo trabalho aumentava em escala inversa à irrisória remuneração que recebiam, solicitaram ao governo estadual um aumento de salário, suspendendo provisoriamente suas atividades até que a sua solicitação fosse atendida.

Nesse período, um repórter do jornal A Tarde flagrara uma família que “andava em via sacra de cova em cova” a procurar “a sepultura de um parente querido”. Esforço baldado, segundo o jornalista, pois não havia número ou registro que a identificasse das demais. O número descomunal de sepultamentos verificado nesse período justificava a quebra de protocolo do cemitério.

A MORTE DESSACRALIZADA

Contemplar a morte despida de todos os rituais funerários tradicionais representava para aquela sociedade uma ruptura brutal  e desumana dos códigos socioculturais. A supressão da liturgia fúnebre, dessacralizava a morte, tornando-a ainda muito mais  temível. As práticas culturais relativas aos ritos que acompanhavam o adoecimento, o morrer e a morte ajudavam a digerir a perda, a extravasar a dor, conferiam identidade e ofereciam algum conforto e segurança aos que perderam seus entes queridos.

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A “peste” roubava o respeito devido aos mortos e o direito das famílias prestarem-lhes as homenagens devidas. Todavia, ainda que se abstivessem de velar o morto, rezar missa de corpo presente e acompanhar o féretro até a sua última morada, os católicos não se atreviam a negar a extrema-unção ao moribundo. Fotografia do vigário da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, levando o conforto da religião aos que se encontravam às portas da morte, publicada em A Tarde, atesta a prática.

As rupturas brutais impostas pela doença epidêmica à vida cotidiana e às relações sociais iam, paulatinamente, transformando a fisionomia de Salvador. A situação se agravara a tal ponto que deixou em suspenso a vida na cidade: o comércio fechado, as ruas quase desertas, visto que, temendo o contágio, as pessoas preferiam recolher-se aos seus lares.

Os poucos que se aventuravam fora de casa, traziam na face as marcas da doença. Esses, talvez, já se sentissem imunes à varíola, mas tal como os que ainda se sentiam ameaçados pelo mal, nutriam, certamente, sentimentos característicos dos períodos de crise epidêmica – insegurança, medo, ansiedade, angústia, desalento – provocados pelas transformações do cotidiano, pelas perdas e pelo assédio da morte.

Esse quadro de angústia e ansiedade não gerou, em Salvador, os distúrbios sociais, a histeria coletiva, nem a fuga dos lugares infectados, comuns às narrativas de eventos epidêmicos. Um repórter até insinuou que poderia ocorrer evento semelhante à “Cemiterada”, caso o governo insistisse em abrir valas para sepultar os variolosos em um campo de futebol existente no bairro de Brotas. A documentação consultada pelos autores não menciona se o projeto foi efetivado, mas durante o período não se registrou nenhum tipo de distúrbio relativo à epidemia.

Tela sobre a morte de uma mulher negra

“MORRA O CEMITÉRIO!”

A “Cemiterada foi um levante que começou  – conta João José Reis, em “A morte é uma festa” – como um protesto convocado pelas irmandades e ordens terceiras de Salvador, organizações que cuidavam, entre outras funções, dos funerais de seus membros. Centenas de pessoas marcharam pelas ruas da cidade, como uma procissão: com hábitos, capas, cruzes e as bandeiras de suas confrarias.

O caráter religioso dos participantes inibiu uma repressão mais efetiva dos poderes públicos. A população, em geral, ficou ao lado das irmandades e contra os cemiteristas. O cemitério era visto como uma ameaça à fé católica.

Houve discursos e um abaixo-assinado contra a companhia que havia ganhado o monopólio dos funerais e construído o Corpo Santo. A multidão invadiu o palácio, fazendo com que o presidente da Província suspendesse a proibição dos enterros nas igrejas até a realização de uma sessão extraordinária na Assembleia Provincial. Mas, isso não foi suficiente. A população enfurecida se dirigiu ao cemitério, munida de machados, barras de ferro e outros instrumentos usados nas obras do local.

Aos gritos de “Morra, cemitério!”, o local foi destruído em algumas horas. As instalações foram quebradas e incendiadas: portões, muros, grades, mármores para as lápides, coches, panos funerários, e até mesmo a capela – nada escapou da fúria dos revoltosos. Terminada a destruição, passou-se para o saque: as pessoas retornavam à cidade, levando nas mãos os restos dos materiais fúnebres. A polícia se manteve afastada. Muitos autores destacam os aspectos econômicos da revolta, pois, a nova lei retiraria parte da renda das irmandades e de outras instituições ligadas ao mercado “da morte”, esse dinheiro passaria às mãos da empresa privada responsável pelos enterros”.

ENTRE PROCISSÕES E APELOS AOS ORIXÁS

De volta ao segundo semestre de 1919, várias procissões percorriam as ruas da cidade entoando preces aos santos advogados contra pestes: São Roque, São Lázaro e São Francisco Xavier. Por sua posição na esfera celeste, os santos eram considerados intercessores poderosos, atuando como elemento de ligação entre Deus e o devoto. Vistos como aliados celestes do homem, os santos advogados eram invocados para mitigar as dores da alma, resolver problemas práticos da vida, curar os males do corpo e do espírito e eram frequentes as promessas para recuperar a saúde.

Em tempos de epidemia as imagens dos santos desciam dos altares para ficarem mais próximas das súplicas dos fiéis. Para o devoto, a proximidade física com os elementos do sagrado aumentava a sensação de conforto e proteção divina contra a peste e a morte súbita por doenças graves e contagiosas. Foi por isso que a antiga imagem de São Roque desceu do seu altar na Igreja do Bonfim e São Lázaro saiu da sua igreja, situada em bairro homônimo, na periferia, para ser exposta à adoração dos fiéis na Igreja de Nossa Senhora da Barroquinha, no centro da cidade.

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A identificação dos santos católicos com os orixás do Candomblé pode ter contribuído para reforçar o apelo dos baianos ao Senhor do Bonfim, a São Roque e a São Lázaro. No paralelismo religioso, o Senhor do Bonfim é associado a Oxalá, considerado o pai de todos os orixás e dos seres humanos, aquele regula o fim da vida.  Já São Roque é associados à Obaluaiyê, moço e forte, enquanto São Lázaro é relacionado à Omolu.

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Fontes da matéria:

Christiane Maria Cruz de Souza, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA, onde integra o Núcleo de Tecnologia em Saúde e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências (UEFS/UFBA), também doutora em História das Ciências pela Fiocruz.

Gilberto Hochman Professor História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz, Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e do CNPq.

Márcia Pinna Raspanti – Jornalista pela Faculdade Cásper Líbero historiadora pela Universidade de São Paulo e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de História e Comunicação, com ênfase em História e Economia.

Destaque

THEATRO SÃO JOÃO – PRAÇA CASTRO ALVES SERÁ INTERDITADA NO CARNAVAL EM RAZÃO DE DESCOBERTA ARQUEOLÓGICA

                                Albenísio Fonseca                                                                                                                     

                                                                                                                                                                                                Fotos: Albenísio FonsecaA imagem pode conter: atividades ao ar livre
A estrutura do Theatro ganhará intervenção contemporânea, no sentido de adequá-la urbanisticamente à praça

Durante escavações para obra de requalificação urbana na Praça Castro Alves, foi descoberta parte da estrutura do antigo Theatro São João – como se diria de uma revelação arqueológica. O achado foi divulgado na segunda-feira (23), por este jornalista, após deparar-se com fotos que circulavam em rede social sem a avaliação do enorme valor da novidade. O fato passou a agitar ainda mais a vida cultural da cidade após incêndios, suspeitos de atos criminosos, que atingiram, na semana anterior, duas esculturas, a de uma baiana de acarajé, no Memorial das Baianas, na Praça da Sé; e a da “Fonte da Rampa do Mercado”, em homenagem a Salvador, de Mário Cravo Jr. (1923-2018), na Praça Cairú.

A descoberta ganhou reconhecimento oficial nesta quinta-feira (26), durante entrevista coletiva à Imprensa no local a ser consolidado como o “mais novo sítio arqueológico de Salvador”. Segundo o secretário municipal de Cultura Claudio Tinoco, “a Praça Castro Alves será interditada, ainda que parcialmente, mas em grande parte, para o Carnaval de 2020”. Tinoco adiantou que, “ao contrário dos nichos arqueológicos existentes na Praça da Sé, cercados e disponíveis apenas para visualização, a estrutura do Theatro ganhará intervenção contemporânea, no sentido de adequá-la urbanisticamente à praça. Possivelmente teremos um espaço que, como um palco, contemplará manifestações artísticas”, estipulou.

 

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O arqueólogo Claudio Silva e o secretário de Cultura Claudio Tinoco: prospecções avançadas

De acordo com o secretário, as intervenções, da Avenida Sete à Castro Alves, têm custo de R$ 2 milhões, obtidos junto ao BID-Banco Interamericano de Desenvolvimento através do Prodetur-Programa Nacional de Desenvolvimento do Turismo. Cerca de 20% do montante, R$ 400 mil, são destinados aos trabalhos de prospecções arqueológicas, 77% das quais já concluídas. Iniciadas em fevereiro e com prazo de conclusão previsto para 14 meses, as obras deverão estar concluídas em maio do próximo ano. Mas os estudos arqueológicos, por conta da nova descoberta, serão prorrogados, agora, por mais 15 a 30 dias. O novo calçamento da praça será em pedra portuguesa e piso intertravado.

Também presente à Coletiva, o diretor geral do Iphan na Bahia, Bruno Tavares, esclareceu que, por lei, “obras de escavação em sítios históricos exigem acompanhamento de equipes de arqueólogos, desde antes de iniciadas e durante as intervenções”. Tanto ele quanto Tinoco fizeram alusões a outras descobertas de peças históricas nas escavações feitas em trechos da Avenida Sete, como a de uma urna funerária indígena, do período pré-colonial. Amostras de materiais descobertos nas escavações são encaminhadas a laboratórios, no próprio canteiro de obras e em Paulo Afonso, no Norte do estado, para estudos que permitirão detalhar aspectos históricos e culturais, teor das composições e datação.

 

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Diretordo Iphan, Bruno Tavares: “escavações exigem acompanhamento de arqueólogos” 

AGLOMERADOS DE ESTRUTURAS

O arqueólogo Claudio Cesar Silva, da Secult, detalhou procedimentos prévios, como o uso de GPR-Guia Por Radar, que permitem a localização de corpos estranhos ou estruturas sob o solo, a exemplo das descobertas ocorridas na Avenida Sete e Praça Castro Alves. “Nós já sabíamos, há cerca de um mês que nos depararíamos com um aglomerado de estruturas aqui. Mas não imaginávamos que seria tão bonito e relevante esse achado”, afirmou.

Em meio a essa “temporada incendiária”, a descoberta arqueológica emocionou boa parte da população de Salvador ao ver – como uma fênix – o Theatro São João ressurgir das próprias cinzas. O fato gerou a mobilização de setores da sociedade a defender a implantação de um sítio arqueológico como forma de preservar a estrutura localizada, em resgate da memória cultural do Theatro e da cidade.

Dos trabalhos de escavações realizados pela Prefeitura para requalificação da Avenida Sete e que se estendem à Praça Castro Alves, participam, também, técnicos do Iphan-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A estrutura localizada foi inicialmente atribuída à área do palco, o que seria descartado, em seguida, diante da evidência de tratar-se de uma fonte ou chafariz, em frente ao equipamento, considerando imagens históricas do prédio e mesmo suas dimensões na praça.

                                                                          Foto: Camilo Vedani/Rubens AntonioA imagem pode conter: céu, atividades ao ar livre e naturezaO Theatro São João na foto de Camilo Vedani, em 1865, retificada e colorizada pelo geólogo Rubens Antonio

SOB O SIGNO DO FOGO

O teatro foi erguido no centro histórico de Salvador em 1812 e inteiramente consumido pelo fogo em 1923. Antes, em 1912, foi atingido por incêndio em decorrência do bombardeio à cidade ordenado por Hermes da Fonseca, então presidente da República. A trágica iniciativa foi gerada por controvérsias políticas envolvendo a disputa pelo governo do Estado entre J.J. Seabra e Rui Barbosa. O bombardeio danificaria completamente, também, o Palácio Rio Branco e a Biblioteca Pública.

A área urbana, com monumento a Cristóvão Colombo ao centro (onde seria instalado depois a estátua de Castro Alves), após a inauguração e durante longo período, era denominada Largo do Theatro. Mas também dispôs de designações como Largo da Quitandinha, onde ocorria, semanalmente, uma feira livre.

PRIMEIRO TEATRO DE ÓPERA DO BRASIL

Primeiro grande teatro de ópera do Brasil, o “São João” foi inaugurado em 13 de maio de 1812, data de aniversário do Príncipe Regente Dom João. Nele ocorreu, ainda, a primeira projeção com cinematógrafo, fato também marcante para a historiografia baiana. Um incêndio em 6 de junho de 1923 destruiu completamente o magnífico prédio. No local, foi construído posteriormente uma edificação que abrigou a Secretaria Estadual de Agricultura e, depois, convertida em Palácio dos Esportes para abrigar as federações de desportos.

A criação do Theatro foi justificada, em 1806, por uma portaria do Conde da Ponte,  governador Régio da Bahia, à época. Seria erguido no que se convencionou designar, desde o período colonial, às Portas de São Bento e teve as obras parcialmente custeadas com recursos de uma loteria.

A arquitetura seguiu o estilo Luís XVI, mas o projeto perdeu-se no incêndio decorrente do bombardeio de Salvador, em 1912. Sabe-se que a acústica do Theatro era elogiada e que as madeiras de lei utilizadas na edificação foram jacarandá e cedro. Adornavam as instalações várias pinturas ornamentais, em grandes tamanhos e esculturas. Suas paredes eram muito espessas, uma das prováveis razões de sua longevidade.

Foi o quarto teatro público da Bahia e estima-se que tinha capacidade para mais de 800 pessoas, embora alguns autores acreditem que chegasse a 2000.

Em sua primeira temporada o teatro empregou uma companhia portuguesa de artistas, uma orquestra, dançarinas e cantores italianos, além dos técnicos cênicos. Posteriormente, vários artistas baianos passaram a integrar o quadro, com importantes contribuições para a arte dramática nacional.

 

Destaque

SALVADOR DO TEMPO EM QUE ERA A CIDADE DA BAHIA E QUEM NASCIA AQUI ERA BAIANO COM OU SEM H

Carlos Verçosa

A imagem pode conter: 1 pessoaErnesto Simões Filho proibiu o uso do termo Soterópolis e até mesmo Salvador no cabeçalho do jornal
Soteropolitano é o cara que nasceu
em Soterópolis. Conhece essa cidade?
Esse negócio de chamar Salvador,
a Cidade da Bahia, de Soterópolis
é frescura de acadêmico erudito
que se acha.
Um letrado metido a intelectual
que buscou seus quinze minutos
de fama ao propor a adoção
de um nome ‘mais grego’,
um gentílico laico para Salvador.
Justificou assim, despudoradamente,
entre os seus pares de academia,
uma variante do antropônimo latino
soter, vindo do grego sotêr, ‘salvador’.
Daí, essa conversa mole pra boi dormir
de que quem nasce em Salvador
é ‘soteropolitano’, gentílico considerado
mais autóctone, mais intelectual
e à altura da cidade (pólis grega).
Aonde?!
Nem da Cidade Alta,
nem da Cidade Baixa.
Mas, logo, outro acadêmico,
invejoso do sucesso do coleguinha,
propôs uma versão ainda mais bizarra
para Salvador e os baianos.
Ele acatava, ‘em princípio’,
a teoria bestial do gênio beletrista
que empurrava ‘soteropolitano’
como derivado de quem nasce
na Cidade da Bahia,
mas desacatava ainda mais
a história da primeira capital.
O novo pai do termo argumentava
por a + b que tal gentílico, Soterópolis,
significava uma antiga cidade grega,
erigida por seu imperador e em sua homenagem, chamado Sotero.
Assim, teríamos sotero + pólis,
ambos termos gregos.
Aplausos polidos da galera.
Mas o ciúme lançou sua flecha preta
na academia e um terceiro confrade
se viu ferido justo na garganta.
Nem alegre, nem triste, nem poeta,
mas talqualmente oportunista,
formulou nova e revolucionária
teoria para agradar gregos e baianos
religiosos, menos heréticos e eréticos.
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Eles não estavam muito satisfeitos
com a laicização da proposta
para a nova explicação da origem
do nome e adoraram essa nova demão,
ou mãozinha que embala o berço natal.
O argumento do terceiro intelectual
foi de que tratou-se de uma justa homenagem a São Sotero, o 12º papa,
que papou entre 166 e 174.
De origem grega, Papa Sotero nasceu
em Nápoles (ele sim, pode ser chamado soteronapolitano) e é festejado por seu zelo pela doutrina e pela mão aberta.
Tradicionalmente é lembrado pelos católicos por ter enviado esmolas para muitas igrejas em todas as cidades.
Marco Aurélio, o ‘imperador filósofo’,
cuja filosofia foi perseguir cruelmente
os cristãos, martirizou e despachou
desta para a melhor o Papa Sotero,
posteriormente canonizado pela Igreja.
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O Cardeal da Silva com Getúlio Vargas nos anos 30, período do Estado Novo
Claro que esse argumento calou fundo
no coração católico dos baianos, principalmente após campanha feroz
do Cardeal da Silva para a sua adoção.
O Cardeal aproveitou-se da polêmica
desencadeada pelos intelectuais
acadêmicos para lançar uma cortina
de fumaça, tergiversar descaradamente, sobre outra  polêmica que ganhara
as primeiras páginas da imprensa
baiana: a demolição da Igreja da Sé.
Por trinta dinheiros (trezentos contos,
na época), Cardeal da Silva, atendendo
aos interesses da Companhia Linha
Circular (gentílico da multinacional
Light), vendera a velha igreja
para o bonde do progresso
avançar seus trilhos em linha reta,
soterrando anos de história, cultura
e tradição baiana.
A polêmica sobre o gentílico do nome
de quem nasce na cidade, portanto,
vinha a calhar.
Tal discussão tergiversava,
desviava a atenção, limpava a sua barra
e mudava o foco na imprensa.
Cardeal da Silva adorou.
Aproveitou a oportunidade para sacramentar tal teoria ateando gasolina
ao fogo no rabo dos acadêmicos.
Garantiu, por sua vez, que o cultismo tinha sido cunhado anteriormente por um padre português, que era também renomado geógrafo, Manuel Aires de Casal (1754-1821).
Disse que o termo ‘soteropolitano’
tinha sido posto para circular
(ato falho recorrente da sua eminência) desde a publicação do livro
“Corografia Brasílica”, de 1817.
Ora, foi a água benta no mel
dos orgulhosos acadêmicos,
que recebiam, assim, o reconhecimento
da igreja e o nihil obstat para o imprimatur que rebatizava a cidade.
Soterópolis. Soteropolitanos.
Só quem não comeu essa farofa
foi o jornalista Ernesto Simões Filho,
do jornal A Tarde, que retornava
do exílio por ter-se oposto
ao Golpe de 1930 e à intervenção
militar que enfiara Juraci Magalhães
goela abaixo dos baianos.
Diante da polêmica que encontrou
na volta, estampada nas primeiras páginas, inclusive do seu vespertino,
ele prontamente proibiu o uso do termo Soterópolis e até mesmo Salvador
no cabeçalho do jornal.
A Tarde publicava, além do logotipo, simplesmente Cidade da Bahia, data
e número da edição.
Sobre a Igreja da Sé, entretanto,
calado estava, calado ficou.
Ficou apenas na notícia a demolição
a marretadas e picaretas.
Para pagar esse pecado,
o Cardeal da Silva foi condenado
a se tornar uma avenida que
é uma rua estreita, barulhenta
e eternamente engarrafada.
Dessa forma, os agora chamados
soteropolitanos, podem ter raiva
e xingar à vontade esse Cardeal
vendilhão do templo ipsis litteris
todo santo dia.
Entrou por uma das sete portas,
saiu por outra,
esta é mais uma história do tempo
em que se escrevia Bahia com agá.
Quem quiser que conte outra.
●○•●○•●○•●○•●
Carlos Verçosa é poeta e publicitário
Destaque

CASA CAYMMI: Equipamento ainda é uma lacuna no roteiro cultural de Salvador

                                                                                                                                           Fotos: ReproduçãoA imagem pode conter: 1 pessoa, sorrindo, tocando um instrumento musical e violão
Dorival Caymmi, em 1956, sob o sucesso das canções praieiras a revolucionar a MPB

Albenísio Fonseca

A Bahia poderá ganhar um equipamento destinado a preservar o legado e exibir o acervo musical e pictórico do seu mais emblemático cantor, com a implantação da “Casa Caymmi”, suprimindo inadmissível lacuna para o circuito cultural e junto aos equipamentos turísticos da cidade. O empenho dos herdeiros em consolidar a iniciativa vem desde o governo Paulo Souto, em 2005. Mas, de acordo com o neto de Dorival, Gabriel Caymmi, 41 anos, “a derrota de Souto para Jaques Wagner, em 2006, fez retroceder as negociações. Tentadas mais recentemente com o prefeito ACM Neto, não avançaram”.

Desde o final de agosto de 2018, no entanto, foram reabertas negociações com a Secult-Secretaria Estadual de Cultura e o Iphan-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em reunião intermediada pelo coordenador-geral da Arpa-Associação de Resistência Poética e Artística, Adroaldo Quintela, no gabinete da Secult. Do encontro participaram, além do próprio Quintela e de Gabriel Caymmi, a secretária Arany Santana e uma representante do Iphan.

Em julho, quase um ano depois, foram oferecidas pelo Iphan as instalações do Cine XIV, incendiado e abandonado em 2017; e, pela Secult, as dos museus Tempostal e Udo Knoff de Azulejaria e Cerâmica, todos no Centro Histórico de Salvador. Gabriel e Quintela visitaram esses equipamentos. Na ida ao Cine XIV, os gestores não localizaram a chave do cadeado.

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Gabriel, filho de Danilo e Ana Terra, ao lado da escultura do avô em Itapuã

LOCALIZAÇÃO REQUER MAIOR VISIBILIDADE

Durante a vistoria às ruínas do Cine XIV, Gabriel, que artista gráfico e filho de Danilo Caymmi e da compositora Ana Terra, observou que “tão problemática quanto a revitalização do sobrado era a localização”, que considerou “muito escondido para a grandeza da obra do avô. Preferimos um local com melhor acessibilidade e visibilidade”. Sobre os outros dois museus, foram informados, em seguida, de que “a Secretaria pretende reformar e mantê-los com as atuais destinações”.

Gabriel confirma que as negociações ainda seguem em andamento e que, além de “precisar manter novas conversações com os tios Dori e Nana Caymmi, por conta das posições políticas diferenciadas deles”, aguarda proposta de novas localizações pela Secult ou Iphan, com maior demonstração de interesse por parte dos dirigentes e a definição sobre a quem caberá a captação de recursos, se à Secretaria de Cultura ou aos familiares”.

Adroaldo Quintela revela ter viajado ao lado do governador Rui Costa, durante vôo de Brasília a Salvador, quando aproveitou para comentar o projeto, exibir foto das primeiras negociações com Arany Santana e que Rui teria “declarado interesse”, suponho que com a boa intenção de que o inferno anda cheio. Na capital, Dorival Caymmi é homenageado com nome de praça e avenida em Itapuã e um Festival para novos músicos e compositores desde meados dos anos 80 além da escultura no calçadão de Itapuã, em 2015.  A última vez que esteve na cidade foi em 2006, aos 92 anos, ao ser homenageado como vencedor do Prêmio Jorge Amado.

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Face pouco conhecida de Caymmi, a de desenhista e pintor

ACERVO SERÁ DOADO PELO MIS

Gabriel adiantou que praticamente todo o acervo de Dorival Caymmi encontra-se no MIS-Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro (https://www.mis.rj.gov.br/acervo/colecao-dorival-caymmi/), e com reproduções digitalizadas no portal de Tom Jobim (http://portal.jobim.org/pt/acervos-digitais/dorival-caymmi) para o qual foi organizado e digitalizado em 2009. O acervo possui mais de 4 mil itens catalogados de fotos, documentos, desenhos e pinturas, áudios e vídeos.

A rigor, no MIS, a coleção Dorival Caymmi é constituída, fundamentalmente, por documentos iconográficos, aí incluídas fotografias e cartazes de show, além de documentos sonoros, bibliográficos e objetos tridimensionais. O MIS se comprometeu a ceder, como doação, o patrimônio físico e digital – partituras, gravações em áudio dos discos – para compor o cogitado novo espaço cultural em Salvador.

Gabriel ressalta que há inúmeros pertences pessoais de Dorival, como documentos e acessórios, em mãos dos familiares, inclusive diversas fitas k7 nas quais, acredita, existam músicas inéditas. Ele fez ver a “necessidade de ainda ser dimensionado todo o acervo” do cantor e compositor. Há inúmeros quadros, rascunhos e estudos de desenhos com técnicas novas que ele vinha desenvolvendo nos trabalhos de arte visual.

                                                                                                                                               Foto: Gabriel Paiva
 Dorival Caymmi influenciou gerações e marcou a MPB com sua ‘teimosa paciência’ Foto: Gabriel de PaivaArtista foi homenageado este ano com o documentário “Dorival Caymmi: Um homem de afetos”

BIOGRAFIA E SUCESSOS

Compositor, cantor e pintor, Dorival Caymmi nasceu em Salvador a 30 de abril de 1914. Aos 16 anos, em 1930, interrompe os estudos, passando a trabalhar como auxiliar no jornal “O Imparcial”, mesmo ano em que escreve sua primeira canção, “No Sertão”. Aos 20 anos, começa a se apresentar como cantor e violonista na Rádio Clube da Bahia. Em 1936, vence concurso de músicas de carnaval com o samba “A Bahia também dá”, sendo premiado com um “abajur de cetim”.

Dois anos depois, em 1938, “pegou um Ita no norte e foi para o Rio de Janeiro morar”. Consegue emprego como desenhista numa agência de publicidade e passa a se apresentar na Rádio Tupi. Em 1939 a canção “O que é que a baiana tem?”, em dueto com a diva Carmen Miranda, torna-se sucesso nacional. Em 1940, atuando na Rádio Nacional, conhece a caloura Stella Maris, com quem se casa e tem três filhos: Dinahir (Nana), em 1941, Dorival (Dori), em 1943, e Danilo, em 1948.

Entre os maiores sucessos, vale citar: “Você já foi à Bahia?” (1941), “A preta do acarajé” (1939), “Samba da minha terra” (1940), “Rosa Morena” (1942), “Dora” (1945), “Peguei um Ita no Norte” (1945), “Marina” (1947), “Não tem solução” (1950), “Sábado em Copacabana” (1951), “João Valentão” (1953), “Só louco” (1955), “Maracangalha” (1956), “Saudade da Bahia” (1957), “Oração para Mãe Menininha” (1972) e “Modinha para Gabriela” (1975). “As canções praieiras” com que homenageia Itapuã e a Lagoa do Abaeté datam de 1954.

Agora, em 2019, foi lançado no Rio de Janeiro e em São Paulo, durante o festival “É tudo verdade” o documentário “Dorival Caymmi: Um homem de afetos”, dirigido por Daniela Boitman. Ele revolucionou a MPB e influenciou gerações de artistas, criando toda uma mitologia de pretas do acarajé, pescadores, sereias, igrejas, vizinhas do lado, morenas e coqueiros. Em 70 anos de carreira, deixou 127 composições e 17 LPs gravados. Faleceu, no Rio de Janeiro, em 16 de agosto de 2008.

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas, pessoas sentadas e área internaAdroaldo Quintela intermediou os contatos com a Secult e o Iphan, mas secretária nega tratativas

SECULT NEGA NEGOCIAÇÕES

Através da sua assessoria de Comunicação, a secretária Arany Santana informou “desconhecer a existência de qualquer  negociação para a implantação” da Casa Caymmi em Salvador. Ainda assim, foi sugerido à reportagem que o assunto estaria sendo tratado junto ao Ipac-Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado.

A assessoria do Ipac, contudo, confirmou que as tratativas ocorriam diretamente com o gabinete da Secult. Na Secretaria, tampouco souberam informar sobre a revitalização do Cine XIV e se a programação cinematográfica no Centro Histórico continuaria a ser desenvolvida em outra edificação.

A imagem pode conter: atividades ao ar livreCasarão que abrigava o Cine XIV pegou fogo em 2017 e foi recusado para abrigar a Casa Caymmi