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A face revolucionária do futebol

Albenísio Fonseca

O único delírio coletivo permitido no Brasil, além do Carnaval, é a conquista da Copa do Mundo. Espetáculo coletivo, o futebol torna-se ritualístico na medida em que identifica os espectadores com o drama que se desenrola em campo. Os jogadores são como personagens de teatro com os quais nos identificamos numa relação ritualística (espetacular) em que o campo se converte num grande teatro de arena. Visto de forma simbólica, emocional e arquetípica, o futebol é uma confrontação de opostos durante a qual inúmeras emoções são elaboradas, soltas, exercidas e domesticadas.

As origens do futebol perdem-se nos subterrâneos da História. Iniciado na Inglaterra, provavelmente a partir do harpastum, jogo de bola com as mãos trazido pelos romanos da Grécia, há também a hipótese de que tenha-se originado do costume primitivo de chutar a cabeça dos inimigos para comemorar vitórias. Existe ainda a informação do futebol jogado nas terças-feiras de Carnaval em Chester, cidade inglesa fundada pelos romanos.

É possível relacionar pelo menos quatro razões para afirmar o futebol como um jogo revolucionário. Por sua associação ao Carnaval, festa visceralmente ligada à liberação das emoções e instintos. Por ser jogado com os pés, numa contrapartida para com as atividades sociais organizadas e praticadas sob o controle das mãos. Por ser um esporte coletivo e, desse modo, contrariar os esportes individualistas das elites. E, ainda, por dirigir as emoções do povo para uma disputa que acaba bem, ao contrário dos torneios que terminavam com a morte de um dos contendores.

O futebol registra episódios surpreendentes, como o de uma guerra entre a Inglaterra e a Escócia, em 1297, acabar desmoralizada porque os soldados de Lancashire, tradicionais inimigos dos escoceses, desobedeceram a seus comandantes e preferirem disputar sua rivalidade no futebol, ao invés de guerrear.

A face revolucionária do futebol diante do padrão patriarcal acabou por gerar sua repressão legal na Inglaterra, por razões militares de Estado, a partir do século 14, e motivo de ampla legislação proibitiva até o século 16. Mas o esporte floresceria e se difundiria por todas as culturas pelas mais diversas vias. Ao nos identificarmos com os jogadores nesse ritual dramático, sentimos que eles realizam por nós proezas físicas e psíquicas, que nos gratificam profundamente. Se as proezas físicas são maravilhosas de ver, as psíquicas são partilhadas e usufruídas. A imprevisibilidade do jogo faz com que toda sorte de emoções surja entre os heróis e o gol (jogadores de futebol são heróis do povo e o goleador o maior deles).

“A ação dramática transcorrida nos 90 minutos é um símbolo transfigurado do processo de luta pela vida para atingir nossas metas. Como o gol adversário (a meta) é defendido por um time igual ao nosso, para atingi-lo temos que nos defrontar com emoções intensas e atravessá-las pelo drible, pelo controle da bola, intuição, planejamento, ação conjunta, malícia, velocidade, tudo enfim que há de humano contra tudo humanamente igual”. Quem discorre é o analista junguiano Carlos Byngton em Nos conflitos simbólicos da alma coletiva, in “Em campo, futebol e cultura”, págs. 28 a 47; Ed. SP Cultura – Agosto de 1982.

– O futebol lida com emoções da maior importância, como a agressividade, a competição, amizade, rivalidade, inveja, orgulho, depressão, humilhação, fingimento e traição, entre tantos outros. O exercício da ética no futebol é tão evoluído que trouxe até mesmo a codificação de não se marcar uma falta que beneficie o infrator. Também a regra do impedimento, que proíbe receber por trás da defesa, delimitando física, espacial e dramaticamente situações de lealdade no confronto direto, e de traição no atacar por trás.

As emoções elaboradas pelos jogadores correspondem, simultaneamente, às vividas pelos torcedores. Um time que se lança ao ataque ativa a coragem e a ambição do torcedor. As tentativas de invasão de área e realização do gol podem, de logo, ser invertidas num contra-ataque.

No mais, devemos acompanhar os jogos de campeonatos, várzeas ou nas Copas do Mundo, com um esforço de consciência para compreender seus símbolos e exercê-los, não só no âmbito das suas arenas, mas em todas as instâncias da política e da cultura.

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Albenísio Fonseca é jornalista

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A nova “alvorada voraz” da Cultura

 Filósofo, militante político e psicanalista francês, Felix Guattari foi aluno e paciente de Jacques Lacan, antes de romper com ele. Inventor da esquizoanálise, junto com Gilles Deleuze, clinicou durante muitos anos na célebre clínica La Borde

Albenísio Fonseca

Seja dentro ou fora do discurso antropológico, a palavra cultura relaciona-se com as práticas de organização simbólica, de produção social de sentido e de distinção social pela sensibilidade. 

Seu sentido mais antigo, entre os vários que teve e por todo o decurso histórico, é o que aparece na expressão “cultivar o espírito”, entendida por um filósofo e psicanalista como o francês Felix Guattari (1930-1992) – no livro “Micropolítica – cartografias do desejo”, com artigos, cartas, palestras, entrevistas e debates organizados pela psicanalista Suely Rolnik, quando da segunda estada dele no Brasil, em 1986 – como “cultura-valor”, por corresponder a um julgamento de valor que determina quem tem e quem não tem cultura; os que pertencem a meios cultos ou a meios incultos.

Um segundo núcleo semântico, no entendimento de Guattari, corresponde à “cultura-alma coletiva”, sinônimo de civilização. Aí já não se trata de ter ou não ter: todo mundo tem cultura, qualquer um pode reivindicar sua identidade cultural, no que constitui uma espécie de “a priori” da cultura. “

O terceiro núcleo semântico proposto por Guattari, compreende a cultura de massa, ou ao que ele chama de “cultura-mercadoria”. Nesse caso, “já não há julgamento de valor, nem territórios  coletivos da cultura, mais ou menos secretos. A  cultura são todos os bens, todos os equipamentos, todas as pessoas, todas as referências teóricas e ideológicas relativas a esse funcionamento, enfim tudo o que contribui para a produção de objetos, como discos, livros, filmes, etc… difundidos num mercado monetário ou estatal”.

MERCADO DE PODER

Todavia, a cultura não é apenas o processo da transmissão de informação cultural, de sistemas de modelização, é também uma maneira das elites (ou pretensas elites) capitalistas exporem o que se pode denominar de um “mercado geral de poder”. Não apenas sobre os objetos culturais ou sobre as possibilidades de manipulá-los e criar algo, mas de poder atribuir a si os objetos culturais como signo distintivo das relações sociais, da relação com o outro. 

Nessa cartografia, ou mapeamento do que seja cultura com base nas investigações levadas a efeito por Felix Guattari sob concepção pós-moderna, “o conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira de separar atividades semióticas (de orientação no mundo social e cósmico) em esferas às quais os homens são remetidos. Tais atividades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotização dominante – ou seja , simplesmente recortadas de suas realidades políticas”. Não existe, de acordo com o analista francês, cultura popular e cultura erudita . Há uma cultura capitalística (ele introduz o sufixo “ístico” para tornar o termo mais abrangente) que permeia todos os campos de expressão.

“ART IS MONEY”

 “No fundo, só há uma cultura: a capitalística. A cultura enquanto esfera autônoma só existe em nível dos mercados de poder, dos mercados econômicos, e não em nível da produção, da criação e do consumo real”. Algo que nos remete imediatamente à famosa prescrição do artista pop norte-americano Andy Wharol: “Art is money”.

Para Guattari, “o que caracteriza os modos de produção capitalísticos é que eles não funcionam unicamente no registro dos valores de troca, funcionam também através de um modo de controle da subjetivação”. Desse ponto de vista, o capital funciona de modo complementar à cultura, enquanto conceito de equivalência: “O capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva”. Levando-nos à conclusão de que “é a própria essência do lucro capitalista que não se reduz ao campo da mais-valia econômica: ela está, também, na tomada de poder da subjetividade.

A realidade é que, na matriz da comunicação e da informação, o cultural tornou-se em instrumento puramente operador de fluxos. Ou seja, através da inserção de conteúdos lúdico-culturais, os mídias oferecem oferecem produtos híbridos de entretenimento e de referência à cultura burguesa clássica, cujo objetivo primordial, ou sua estratégia politica global, visa essencialmente a atuar como dispositivo de mobilização e integração administrada das populações.
 
Hoje, sem conseguir gerar por si própria valores de legitimação, a estrutura da economia capitalista volta-se para a esfera da cultura como um meio de fornecer aos diversos grupos sociais modelos universais de comportamento como meio de organizar as massas. 
Vale acrescentar que os mass-mídia, de maneira geral, estão vinculados estreitamente à organização monopolista do mercado. Industrialmente produzida e distribuída, a cultura constitui na verdade um jogo destinado a instituir novas formas de poder.

NATUREZA INDUSTRIAL

Em lugar de ideologia, Felix Guattari prefere falar em subjetivação, ou melhor, em produção de subjetividade. Ao contrário de toda uma tradição da Filosofia e das Ciências Humanas que nomeia o sujeito como algo do domínio de uma suposta natureza humana, ele propõe a ideia de uma subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja,  essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida.
 
Essas máquinas de produção da subjetividade variam. “Em sistemas tradicionais é fabricada por máquinas mais territorializadas, na escala de uma etnia, de uma corporação profissional, de uma casta. Já no sistema capitalístico, a produção é industrial e se dá em escala internacional”.

– Assim como se fabrica leite em forma de leite condensado, com todas as moléculas que lhe são acrescentadas, injetam-se representações nas mães, nas crianças. A organização tecnoburocrática reproduz a sua própria imagem, sua grandiosa autoimagem de uma utopia tecnológica, formando a partir dela sujeitos-consumidores.


Essa gestão do espaço social, através de efeitos de fascinação, corresponde a uma sociedade fundada não mais numa ética do trabalho material, mas da produção psíquica, instituindo um capitalismo cognitivo. O que os atores dessa nova cena social necessitam é dar-se conta, com base nessas teorias da subjetividade, dessa realidade já dada do novo modelo organizacional do mundo, em uma sociedade regida pelos signos.

No que pese essas questões estarem sendo mantidas à distância da pretendida polêmica de resgate da cultura no Brasil, diante de tantas ameaças e desmontes promovidos pelo governo Bolsonaro, é necessário salientar que um projeto não assegura o funcionamento efetivo de um poder.

Se vivemos, hoje, simultaneamente, entre o desmonte de políticas culturais e sociais, o descaso administrativo dos bens culturais e uma telerealidade orquestrada por mecanismos tecnonarcísicos implementados pelos mass-mídia (a televisão, em particular) e face à hegemonia das redes sociais na Internet – seria salutar que instituições da sociedade civil pudessem contrabalançar tais influências, oferecendo alternativas culturais diversas da cultura midiática do entretenimento.

É imprescindível apenas que tais instituições realmente existam e se manifestem como polos geradores de fins sociais, sob pena de, inapelavelmente, verem-se anexadas pelos simulacros dessa nova ordem industrial do consumo, enquanto seguimos em renovada busca de uma nova “alvorada voraz” para a Cultura no Brasil.

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TODOS OS MARES DO MUNDO NUMA PEÇA DE TEATRO OU, OS 36 ANOS DA TRAVESSIA DO ATLÂNTICO POR AMYR KLINK

A imagem pode conter: 5 pessoas, atividades ao ar livreAtores da Companhia Cênica Tantos & Tortos atravessavam o mar do cotidiano em 1988

Albenísio Fonseca

       A trajetória mítica dos grandes navegadores invadia o palco. “Thalassa”, que significa “mar” em grego, era o título do espetáculo montado no Teatro ACBEU, na Salvador de 1988, pela Companhia Cênica de Brincadeiras Tantos & Tortos. Sim, a partir da livre adaptação para teatro do livro “Cem Dias entre Céu e Mar” – na realidade o diário de bordo de Amyr Klink, em que narra a odisseia da sua travessia da África para o Brasil – a montagem conseguia trazer todos os mares do mundo, mais que à boca de cena,  à “crista” do palco.

         A solidão. A viagem. A mitologia. Temas que pontuam a aventura da travessia do Atlântico por Amyr Klink são os mesmos que mais fascinaram os “Tantos e Tortos”. Klink, aos 29 anos, partiu da Namíbia, na África, a bordo do Paraty, um barco a remo de quase seis metros, para cumprir um dos maiores desafios já enfrentados por um navegador: cruzar sozinho o Atlântico Sul. A odisseia transcorreu em 1984, há 36 anos. Ele percorreria uma distância de 7.000 km, em um tempo de aproximadamente 100 dias até chegar à Praia da Espera, no litoral da Bahia. Desde então, já liderou dezenas de expedições à Antártida, duas voltas ao mundo, mas sempre sob o signo náutico dessa longa viagem, relatada no livro Cem Dias entre Céu e o Mar.

         O mar, origem arquetípica de todo início. Metáfora viva de todo enigma da origem humana. Este é o “universo” da montagem. Guilyamech (navegante sumeriano sobre quem existe, na mitologia babilônica, o primeiro relato de que se tem notícia sobre aventuras marítimas, as de Ulisses estão narradas por Homero na Odisséia, e aí já se trata da mitologia grega), Marco Polo, Vikings, Amundsen e Scott (primeiros a chegarem ao Polo Sul), Simbad, Joghua Slocum, Thor Heyerdahl e mesmo Moby Dick (a baleia assassina) e o mito de Jonas (o que passou boa parte da vida no estômago de uma baleia) circunscreviam a rota de “Thalassa”, naquela trajetória “mar aberto” em busca da relação primordial.

A imagem pode conter: águaCapa do best-seller de Amyr, um diário de bordo

“CAIS IMAGINÁRIO”

         Nessa viagem pela relação mítica entre o homem e o mar eles embarcavam também na “nau dos insensatos” (embarcação em que eram colocados os loucos durante a Idade Média), navegando por “mares nunca dantes navegados”, diria Camões, no resgate do sentido do mar com a loucura.

         O oceano. O vazio. O fundo inextrincável da mente. O fundo inacessível do mar. A idade da Terra. A dimensão cênica lançando-se do “cais imaginário” proposto por Fernando Pessoa. Uma navegação no oceano do universo simbólico em que mesmo dispondo de todos os instrumentos náuticos, prescindem de âncoras e amarras.

         Para os “Tantos & Tortos”, a viagem de Amyr estava ligada à questão do equilíbrio que caracteriza a própria linha do horizonte, estabelecendo um limite tênue entre a razão e a loucura, céu e mar, mito e ciência: “Dois infinitos se estreitam num abraço insano. Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?”. Como “Ulisses” em fuga da Ilha dos Cíclopes, a bordo da “lâmpada flutuante” de Amir, eles sabiam que teriam de enfrentar a ira de Poseidon (deus dos mares), mas estavam imunizados contra a sedução do canto das sereias.

         Se o objetivo de Ulisses era retornar a Ítaca, após a vitória na guerra de Tróia, e se o de Amyr Klink era o desafio, a aventura, a travessia atlântica – o dos Tantos & Tortos era trazer à tona os mistérios que habitam a profundeza dos mares e do próprio homem.

 

A imagem pode conter: 1 pessoa, céu, atividades ao ar livre e água, texto que diz "FRAM"“Ao apoiar-se na linha do horizonte, ao confundir-se com ela, Amyr navega no espaço da mitologia”

ESPAÇO DA MITOLOGIA

         “Ao apoiar-se na linha do horizonte, ao confundir-se com ela, Amyr navega no próprio espaço da mitologia”, dizia Sérgio Penna, diretor da montagem. “Muitos já haviam tentado a travessia. O Amyr realizou um profundo estudo das cartas náuticas, das correntes marítimas e dos ventos. Ele precisava utilizar-se da mesma astúcia de Ulisses para vencer o mar”.

          No espetáculo há um rompimento com a noção de tempo cronológico. “Atuamos no tempo mítico, onde não há linearidade”. As várias linguagens – música (ao vivo), circo, dança e o próprio teatro – se entrecruzam. Sim, havia na montagem um texto musical, um texto corporal, um texto de imagens, além do próprio texto dramático.

         Durante o processo de criação coletiva eles “mergulharam” também nas estruturas do teatro japonês (Nô e Kabuki), em busca de formas de elaborar a síntese da essência do gestual, do cênico, para atingir um máximo de emoção. Os extremos – Oriente e Ocidente – ficavam perfeitamente definidos no espetáculo. Alguns temas (partir, viajar, vento, baleia) foram trabalhados ideogrâmico-corporalmente pelos atores, para expressar tais situações. Algo como formular “hai-kai cênicos”, uma espécie de “tai-chi-chuan teatral” que envolve citações do I Ching. Mais que uma peça, um poema visual sonoro.

Nenhuma descrição de foto disponível.Cartas náuticas, ventos, correntes marinhas, foram minuciosamente estudados por Amyr Klink

PERCEPÇÃO DO MUNDO

         A viagem de um navegador solitário é convertida cenicamente na sua própria epopeia de percepção do mundo. Nesse sentido, os Tantos & Tortos realizavam um “teatro arqueológico, antropológico e futurista”, como eles próprios definem, e que nos remete à concepção do papel do herói, não só na mitologia como no próprio cotidiano tresloucado daquele fim de século. Em que a noção de deuses heróis e homens (na classificação mitológica) nos surge de tal forma intrincada e, ao mesmo tempo, resolvida, sem que para tanto seja necessário outro ritual senão este: o enigma convertido em espetáculo; o tabu em totem. A aventura, a façanha, em poesia.

         “… Dias inteiros de calmarias, noites de ardentia, dedos no leme e olhos no horizonte, descobria a alegria de transformar distâncias em tempo. Um tempo em que aprendi a entender as coisas do mar, a conversar com as grandes ondas e não discutir com o mau tempo. A transformar o medo em respeito, o respeito em confiança. Descobri como é bom chegar quando se tem paciência. E para chegar, onde quer que seja, aprendi que não é preciso dominar a força, mas a razão. É preciso antes de mais nada querer…”. Nos ensina Amyr Klink no seu livro/diário de bordo, na ritualização e reatualização dos “Tantos & Tortos”.

A imagem pode conter: oceano, céu, atividades ao ar livre, água e naturezaChegada de Amyr Klink à Praia da Espera no Litoral Norte da Bahia

ENERGIA OLÍMPICA

         Navegar é preciso, mesmo num percurso tautológico. Ou, como diz José Miguel Wisnik na publicação da Companhia das Letras do curso “Os Sentidos da Paixão”, a saga de Amyr Klink “é mais uma contribuição do esporte brasileiro para a poetização do universo”. Ou, mais ainda, com o historiador Mircea Elíade, “por que hesitar ante uma expedição marítima, quando o herói mítico já a efetuou num tempo fabuloso?”.

         Para a Companhia Cênica de Brincadeiras Tantos&Tortos, “um palco vazio está sempre cheio de ar. E de luz”. Por isso cabe celebrar o ritual do teatro com toda a energia olímpica, arquetípica e lúdica que é possível. Como Ulisses, tendem sempre a romper com o “metron”, a medida que os deuses impunham aos heróis e aos próprios homens.

         A montagem do espetáculo quatro anos após a travessia do Atlântico a remo (um acessório universal de navegação) constitui também uma ilustração da obstinação de Amyr, esse “navegante atrevido”, como Colombo a realizar nova façanha. Amyr ainda não havia se lançado ao mar, mais uma vez, com a bússola voltada para o Pólo Sul, para a Antártida.

         Uma poética densa acompanha Klink, como uma sombra luminosa: “Minhas sensações são um barco de quilha pro ar. Minha imaginação uma âncora meio submersa. Minha ânsia um remo partido. E a tessitura de meus nervos uma rede a secar na praia”. E não mais que de repente, lá estava ele, ainda com todo ímpeto, a remar na Baía de Todos os Santos.

“ADEGA LUAR”

         “Thalassa”. A odisséia cênica de uma odisséia oceânica. Sete dias trancado na cabina. Sacudido por ondas enormes, flutuando em meio à espuma revolta do mar. Fechado. Sem poder sair. E os “Tantos & Tortos” cantavam: “dormir sem fazer movimento/tecendo o fio da água e do vento”. Lá fora, o ruído discordante: dentro, a certeza genealógica que vem de milênios. Sete dias sem um momento sequer de tristeza, monotonia ou desespero. A grande provação estava vencida. Única testemunha da sua própria loucura, Amyr Klink ganharia a partir desse espetáculo uma série de cúmplices na “virtude da errância por mares contraditórios”.

         A estrutura de continuidade da peça está na “Adega Luar”, um pequeno bordel que nunca fecha, e na música sempre presente, sublinhando as emoções. O teatro tem essa capacidade de tornar mais viva a expressão das outras linguagens sempre que se apossa delas. A longa viagem na sinuosidade das marés que nos atravessam, como aquele espetáculo possibilitara a constatação de que “chegar é estar sempre pronto para partir”.

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Arena na Praça Castro Alves teria impactado todo o Centro Histórico

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Projeto de uma Arena para shows na Praça Castro Alves sofreu forte reação e foi abortado

Albenísio Fonseca

A divulgação dos estudos preliminares de um projeto que previa a construção de uma Arena para shows com capacidade para 5 mil pessoas na Praça Castro Alves, por parte da Secretaria de Turismo da Bahia, em 2013, provocou imediata reação de artistas e agentes culturais da cidade. O assunto passou a ser amplamente discutido nas redes sociais. Logo, uma petição pública online contra o projeto foi criada e, em pouco mais de 48 horas, 1.500 assinaturas já haviam sido coletadas.

O esboço do projeto, em termos estéticos, sequer preservava o monumento ao poeta e o dos criadores do trio elétrio Dodô e Osmar. Sem equilíbrio ambiental, tornava ainda mais árida a velha e famosa praça. Aparentemente terrível, era, no entanto, apenas um esboço. A questão, contudo, era a própria concepção da proposta em si, que previa estacionamento subterrâneo, mas sob capacidade bastante inferior ao público que comportaria, entre outros graves impactos no Centro Histórico de Salvador.

No momento em que se cogita novas intervenções naquela praça, em decorrência da descoberta arqueológica de estrutura supostamente vinculada ao Theatro São João (1812-1923), vale rever o que persiste como demandas em aberto naquele trecho da cidade.

Se criada ao custo de R$ 25 milhões, a Arena, em pleno funcionamento, “inviabilizaria os demais equipamentos do complexo cultural da região, que abrange o Espaço Itaú/Glauber Rocha, o Espaço Cultural da Barroquinha,  o da Caixa Cultural, o Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira, além do Teatro Gregório de Matos que começava a ser restaurado e o Hotel Fasano, já em construção”.

Com a política de fomento a espetáculos de massa, com seus megashows, milhares de pessoas travariam o trânsito, não haveria espaço para estacionar. “As paredes do cinema, como em todo evento na Praça Castro Alves, se transformariam em mictório a céu aberto. O cidadão que quisesse ir a algum daqueles equipamentos já existentes, encontraria bastante dificuldades”.

Em artigo sob o título “Uma lógica esmagadora”, no jornal A Tarde, em janeiro daquele ano, o cineasta e administrador do Cine Itaú/Glauber Rocha, Cláudio Marques, disparou mais uma saraivada de argumentos contrários à iniciativa e no afã de políticas culturais coerentes para com a praça e o sítio histórico:

“Nas proximidades da Praça Castro Alves, existem a Concha Acústica, o Museu do Ritmo, as praças Thereza Batista e Pedro Arcanjo, o Trapiche Barnabé, shows, shows!!! A lógica das festas em Salvador é onipresente Parte da planta do projeto da Arena Castro Alves - Foto: Divulgação | Seture esmagadora. Estamos perigosamente reduzidos a uma fórmula que já está desgastada.

Parece que não podemos fazer outra coisa, desenvolver outras atividades, formar novos públicos… e isso nos levará à morte, culturalmente. Temos que continuar lutando pela diversidade artística na cidade, inclusive musical. Precisamos fugir da lógica das massas. Tudo é alto, barulhento e pensado para multidões.

O Centro Histórico é um lugar precioso, um dos mais belos de todo o mundo. É necessário criar condições para moradias, para pessoas que irão zelar por aqueles espaços cotidianamente. Deve-se priorizar empreendimentos culturais de pequeno e médio portes. É improvável que alguém tenha o desejo de morar ao lado de uma Arena para shows.

Mas é fácil crer que alguém queira morar ao lado de um cinema, dois teatros, dois centros culturais e um museu. A bagunça em que está imersa a Praça Castro Alves, hoje, afugenta empresários e artistas. Muitos sonham, mas quase todos temem a falta de ordenamento na região.

A praça e seu entorno precisam, urgentemente, de uma revitalização. Mas necessitam de coisas mais simples que uma Arena. A fiação elétrica do entorno precisa ser modernizada. As pedras portuguesas devem ser mantidas, mas renovadas. A população precisa de bancos e árvores, pois a praça está árida, inóspita. Precisamos de espaços para bicicletas e mais linhas de ônibus.

A população de Salvador tem o direito a desfrutar desse mirante natural, onde é possível ver o pôr-do-sol e da lua na Baía de Todos-os-Santos, durante o ano inteiro. Com tanto casarão em ruínas, vamos gastar R$ 25 milhões para construir uma Arena para shows? Quando vamos começar a cuidar do que já existe?”.

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“A TEMPESTADE” – Última peça de Shakespeare entra em cartaz no Vila Velha sob direção de Marcio Meirelles

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Ensaios e oficinas para a montagem foram abertos a profissionais e estudantes  (Fotos: Divulgação)

Albenísio Fonseca

“Estamos vivendo todo um caos, nada mais é confiável, nada é mais linear, também as instituições não estão dando conta, ninguém sabe o que acontece, é a tempestade sobre o caos”, argumenta o diretor teatral Marcio Meirelles sobre as razões que o levaram a optar pela montagem de “A Tempestade”, última peça escrita por William Shakespeare (1564-1616), com pré-estreia nesta sexta-feira (03), às 19h, na sala principal do Teatro Vila Velha, no Passeio Público, em Salvador.

A montagem faz parte das comemorações dos 60 anos da Companhia Teatro dos Novos.  O texto – escrito presumidamente entre 1610/1611 – ganhou adaptações que aludem à realidade brasileira, notadamente o ambiente político vivido no país a partir de 2016, com o “golpe parlamentar, jurídico e midiático” que levou ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff e ascensão ao poder do então vice-presidente Michel Temer e, subsequentemente, à controversa eleição de Jair Bolsonaro.

SÍNTESE DA HISTÓRIA

Em A Tempestade, Próspero, Duque de Milão, sofre um golpe de estado tramado por seu irmão Antônio e é exilado em uma ilha com sua filha, Miranda. Ali, anos depois, manipula forças da natureza, através da magia, para retomar o poder perdido. Uma tempestade criada por Ariel, um ser mágico a serviço de Próspero, provoca o naufrágio do navio onde estão os nobres que o destituíram do ducado, entre eles o rei de Nápoles  Alonso e seu filho Ferdinando.

Como um bom estrategista, Próspero planeja resgatar o poder e casar sua filha Miranda com o Príncipe de Nápoles, o que aumentaria seu poder. Mas nem tudo corre como desejado. Caliban, escravizado por Próspero, também planeja derrubar o inimigo comum. Para Lucio Tranchesi, que interpreta o duque exilado, “Próspero não era um bom estadista, mas uma pessoa sensível que optou pelo estudo do oculto o que o levaria a sofrer o golpe”.

A ilha é também convertida em personagem, com seus ruídos, magia e pela própria natureza, em concepção tanto lúdica quanto fantasmática. Conforme Marcio Meirelles, “tal presença é exposta na montagem através de elementos cênicos, demonstrados no figurino, trilha sonora, iluminação e coreografia”. A montagem, ainda segundo ele, “foi pensada, redimensionando o texto do dramaturgo inglês, entrelaçando os elementos por todo o tecido cênico”.

Com isso, adianta, “cenário e figurino dialogam com questões sociais, políticas e ambientais da realidade contemporânea no Brasil e no mundo. O mar e a ilha estão cobertos por petróleo, tonéis servem como tronos e projeções em vídeo mostram trechos de fatos políticos e sociais atuais, tanto no país quanto em outros locais revoltos do planeta”.

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A montagem inicia as comemorações dos 60 anos da Companhia Teatro dos Novos, do Teatro Vila Velha

DIVERSIDADE DO ELENCO

O elenco é composto por atores e atrizes da Companhia Teatro dos Novos, a exemplo de Chica Carelli, Loiá Fernandes, Rodrigo Lélis, Ariel Oliveira, Meniky Marla e Vick Nefertiti. Entre os atores e atrizes convidados constam Lucio Tranchesi, Jackson Costa, Daniel Calibam, Hugo Bastos, Thor Vaz, Yan Britto e Dayana Brito, além de integrantes da Universidade Livre do Teatro Vila Velha. Nada menos que 28 atores e atrizes estarão no palco durante a temporada da montagem que se estendem de 3 a 26 de janeiro e de 5 de março a 12 de abril, sempre de quinta a domingo, às 19h.

“A Tempestade”, de Shakespeare segundo Marcio Meirelles, conta, ainda, com músicas compostas especialmente para esta montagem, tocadas ao vivo pelo elenco e músicos. Surpreende, também, o fato de a única personagem feminina, Miranda, ser interpretada por um homem. Já o personagem Caliban é uma mulher negra, do mesmo modo que Ariel e seus espíritos, também interpretados por mulheres.

TRAMA ENVOLVE JOGOS DO PODER

“Em suma, trata-se de uma peça política. O drama consiste em jogos do poder, com conspirações e usurpação de representatividade e governança que tramam e efetuam golpes, sob regimes de colonização, absorção de identidades, vingança, compaixão, perdão e libertação, regidos por magias. O porquê dessa montagem, segundo Meirelles, decorre da atualidade da narrativa com o tempo em que vivemos”. O figurino, criação de Zuarte e Marcio Meirelles (foto), apresenta elementos que remetem a instituições do Estado e dialoga com o cenário, concebido por Erick Saboya.

A trilha musical envolve percussão, coros de vozes e música eletrônica em camadas sonoras que reproduzem sonoridades ambientais da ilha. Os personagens  – nobres, marinheiros, espíritos, Ariel, Próspero, Caliban, Miranda e Ferdinando – têm seus próprios temas sonoros em meio aos acontecimentos que configuram outras camadas que também interferem no ambiente cenográfico. A concepção musical é um trabalho conjunto de Ramon Gonçalves e Pedro Oliveira Barbosa (do coletivo Aurata), Loiá Fernandes e Anne Cardoso, na qual se misturam música renascentista, toques do candomblé, polifonias vocais e sons eletrônicos.

Já a coreografia, criada por Cristina Castro, sobressai-se frente ao desafio de trabalhar com o grande e diverso elenco, mobilizando corpos que se movem de forma distinta. Sobre Ariel e seus espíritos, Cristina revela a dificuldade em “criar performances para personagens que não são apenas humanas, mas que têm movimento e energia da terra, que movem as coisas, como se sobrevoassem as tramas das histórias”.

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Personagens não são apenas humanos, têm movimento e energia da terra

EDITAL E OFICINAS ABERTAS

Financiado pelo edital Gregórios, Ano II, da Fundação Gregório de Mattos, da Prefeitura de Salvador – a estreia do espetáculo foi antecedida por oficinas como a de Leitura, Tradução e Crítica do texto da montagem, ministrada pelo especialista em Shakespeare, José Roberto O’Shea, sobre a tradução de Barbara Heliodora; de Produção e Mediação Cultural, com Poliana Bicalho; de Comunicação, com Jean Cardoso; de Percussão, Dança e Música, com Loiá Fernandes, Ariel Ribeiro e Ramon Gonçalves, respectivamente; além da Oficina de Seleção de Atores e Atrizes para o coro do espetáculo, sob coordenação da atriz e assistente de direção da Companhia dos Novos, Clara Romariz. A Coordenação de Produção é de Fernanda Beltrão.

Todas as atividades estiveram abertas à participação de artistas e técnicos das respectivas áreas. Os oito Ensaios Abertos da montagem aconteceram entre novembro e dezembro  envolvendo temáticas e técnicas contemporâneas, como Política e Estratégias de Poder; Colonização e Descolonização; Feminismos; Política e golpes; Cenografia; Som/Trilha Sonora; Figurino e Iluminação. Sempre com participações de pesquisadores, especialistas e estudiosos dessas temáticas. Os Ensaios receberam, também, estudantes e professores de escolas públicas e privadas, além de grupos de teatro e de universidades, entre outros.

INGRESSOS E ENTRADA GRATUITA

Os ingressos custam R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia), também disponíveis, segundo a produção do espetáculo, através do site Ingresso Rápido. O projeto prevê, ainda, a concessão de entradas gratuitas para 20% do público que esteja engajado no programa de mediação cultural de A Tempestade (escolas, universidades, comunidades e associações de bairros). Para tanto, interessados podem entrar em contato com a coordenação do evento através do e-mail publicostvv@gmail.com.