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“MORRA O CEMITÉRIO!” OU, O LEVANTE DA CEMITERADA EM SALVADOR

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Tela sobre a Morte de uma mulher negra, autoria não identificada

25 de outubro de 1836. Milhares de pessoas marcham pelas ruas da cidade, como uma procissão: com hábitos, capas, cruzes e as bandeiras de suas confrarias.

A “Cemiterada” foi um levante que começou como um protesto convocado pelas irmandades e ordens terceiras de Salvador, organizações que cuidavam, entre outras funções, dos funerais de seus membros – conta o historiador João José Reis, em “A morte é uma festa”, Companhia das Letras, vencedor do prêmio Jabuti/1992.

– Buscando higienizar a cidade, nossos médicos convenceram legisladores e parte da sociedade de que os “miasmas mefíticos” produzidos pela decomposição cadavérica atacava a saúde dos vivos. Era então necessário expulsar os mortos de entre os vivos como parte de um amplo projeto civilizatório. Em 1836, essa ideologia higienista secular, de inspiração iluminista, entraria em choque com a mentalidade religiosa tradicional e barroca.

Pode ser uma imagem de uma ou mais pessoas e pessoas em pé
Ilustração na capa de “A morte é uma festa”, de João José Reis

Conforme João José Reis, “o dia do quebra-quebra começara com uma manifestação em frente ao palácio do governo, convocada pelas irmandades religiosas. Estas tinham entre suas funções exatamente a organização dos funerais de seus membros”. – Desse singular movimento participaram talvez quatro mil pessoas “de várias classes, qualidades e sexos”, conforme um contemporâneo, numa cidade de não mais de 66 mil habitantes.

“A Cemiterada – como ficou conhecido este levante – evidencia um tipo de religiosidade e de cultura funerária em que o local do enterro desempenhava um papel central no projeto de salvação da alma. O caráter religioso dos participantes inibiu uma repressão mais efetiva dos poderes públicos. A população, em geral, ficou ao lado das irmandades e contra os cemiteristas. O cemitério era visto como uma ameaça à fé católica”.

Houve discursos e um abaixo-assinado contra a companhia que havia ganhado o monopólio dos funerais e construído, há três dias, o Campo Santo. A multidão invadiu o palácio, fazendo com que o presidente da Província suspendesse a proibição dos enterros nas igrejas até a realização de uma sessão extraordinária na Assembleia Provincial.

Mas, isso não foi suficiente. A população enfurecida se dirigiu ao cemitério, munida de machados, barras de ferro e outros instrumentos usados nas obras do local.Aos gritos de “Morra, cemitério!”, o local foi destruído em algumas horas. As instalações foram quebradas e incendiadas: portões, muros, grades, mármores para as lápides, coches, panos funerários, e até mesmo a capela – nada escapou da fúria dos revoltosos.

Terminada a destruição, passou-se para o saque: as pessoas retornavam à cidade, levando nas mãos os restos dos materiais fúnebres. A polícia se manteve afastada. Muitos autores destacam os aspectos econômicos da revolta, pois, a nova lei retiraria parte da renda das irmandades e de outras instituições ligadas ao mercado “da morte”, esse dinheiro passaria às mãos da empresa privada responsável pelos enterros”.

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Salvador, sob a marca das epidemias devastadoras

Nenhuma descrição de foto disponível.Capa de O Imparcial em 11.10.2019
“Epidemias não são eventos apenas biológicos, mas profundamente sociais,
políticos e culturais, que tanto podem aprofundar hierarquias, desigualdades,
conflitos e preconceitos como produzir compaixão, solidariedade e cuidados”
.
Charles Rosenberg

Salvador foi sede do governo geral do Brasil colonial até 1763 e ao longo do século XVIII manteve o posto de cidade mais populosa do Brasil. No contexto das doenças que emergiram, reemergiram ou permaneceram ao longo dos séculos, o porto de Salvador teve sempre um papel crucial.

O porto servia como entreposto de todo tipo de mercadoria trocada no âmbito do império português. Como maior produtor de açúcar da colônia, Salvador tanto recebia produtos vindos da metrópole, quanto escoava a produção agrícola da região.

As atividades portuárias na cidade iniciaram-se ainda como simples embarcadouro comercial, antes mesmo do governo português estabelecer que ela seria a sede do governo geral do Brasil (meados do século XVI), e foram crescendo junto com a cidade, mesmo após a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1763.

Com a intensificação das atividades portuárias em Salvador seguiram-se a colonização de algumas espécies de animais na área dos portos, atraídos pela facilidade de abrigo e alimentação (principalmente pelos resíduos sólidos resultantes dessa atividade), como roedores, baratas, pombos, os quais se constituem em uma fauna sinantrópica nociva.

Animais sinantrópicos são aqueles que se adaptaram a viver junto ao homem, a despeito da vontade deste. Diferem dos animais domésticos, os quais o homem cria e cuida com as finalidades de companhia (cães, gatos, pássaros, entre outros), produção de alimento ou transporte (galinha, boi, cavalo, porcos, entre outros).

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1897 – 1904, VARÍOLA FAZ MAIS DE 2 MIL MORTOS

A despeito da memória coletiva sobre a doença, epidemias com altas taxas de morbidade e mortalidade atingiram a capital do estado em anos que nem sempre terminavam em nove. Uma das mais graves irrompeu em 1897, quando 4.575 pessoas foram acometidas pela varíola e 1.676 foram a óbito. As taxas continuaram altas no ano seguinte, foram 780 casos e 168 óbitos em 1898.

Entre 1899 e 1903, o número de adoecimentos e mortes foi relativamente pequeno, até que, a partir de 1904, as cifras de morbidade começaram a crescer, mas a mortalidade continuou relativamente baixa. Após um período curto de declínio da varíola, em 1909, as taxas de morbidade e mortalidade recomeçaram a crescer, atingindo as cifras de 328 mortos e 1.813 doentes naquele ano. Mas em 1910, essas taxas atingiram graus mais elevados: 2.697 casos e 835 mortos. A partir de 1911, os números começaram a decrescer até que, em 1919, irrompeu a epidemia de varíola mais devastadora que a Bahia conheceu: entre junho e dezembro daquele ano, 4.612 pessoas foram acometidas e 2.804 foram vitimadas pela doença.

1918 – 1919, GRIPE ESPANHOLA E A EPIDEMIA DE VARÍOLA

Mal descansara das turbulências causadas pela gripe espanhola no final de , Salvador se depararia com uma terrível epidemia de varíola. O biênio de 1918-1919 foi particularmente desastroso para a saúde dos soteropolitanos. Não por acaso, o número de habitantes em Salvador passou dos 348.130, computados em 1912, para os 283.422 registrados pelo censo de 1920. O impacto demográfico produzido pelo alto índice de mortalidade por doenças
transmissíveis em Salvador demonstra quanto tais epidemias foram significativamente letais.

A epidemia de gripe espanhola irrompeu em Salvador entre setembro e dezembro de 1918. No ano seguinte, a população foi atingida por uma epidemia de varíola. Em paralelo, os jornais também registraram surtos de febre amarela. Contudo, apesar de a imprensa noticiar tais surtos, nos registros oficiais o número de casos era insignificante, fazendo com que o governo estadual extinguisse o serviço especializado.

Durante muito tempo, a varíola se constituiu em ameaça real para os soteropolitanos, a ponto de ter sido usual a expressão: “na Bahia anno de nove, anno de varíola”. Este adágio popular mereceu destaque na mensagem enviada à Assembleia Legislativa, em 1930, pelo governador Vital Soares, que fez questão de destacar que, apesar do número, o ano de 1929 passou sem que irrompesse uma epidemia de varíola em Salvador.

Em junho de 1919, alguns soldados do exército que regressavam de uma expedição, provenientes da cidade de Barreiras, chegaram a Salvador apresentando sintomas da varíola. Internados no Hospital Militar, logo foram seguidos por outros, acometidos pela mesma doença.

No mês seguinte a varíola atingiu os bairros de Brotas e do Pilar, sendo notificados 17 casos. Em agosto, mês aziago, a doença começou a alastrar-se pela cidade. Infectou, inicialmente, os moradores dos distritos centrais – Paço, Taboão, Santo Antônio, Santana e Sé – alcançando, depois, até mesmo localidades no subúrbio de Salvador.

HABITAR CASARÕES OCUPADOS NO CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR, BAHIA ...



Condições de moradia eram extremamente insalubres

 

 

 






FATORES DETERMINANTES, AS CONDIÇÕES SOCIAIS

Vários fatores podem ter contribuído para a rápida disseminação da doença, dentre esses, as condições sociais em que vivia a camada mais pobre da população de Salvador, vítima da crise habitacional e da especulação imobiliária em curso naquele decênio. A reforma urbana e a expansão do setor de serviços contribuíram para aumentar a carência de imóveis nos distritos centrais da cidade.

Assim, os desprovidos de recursos pecuniários, em busca de baixos preços de aluguéis ou de maior proximidade com o trabalho, se aglomeravam nos velhos sobrados encortiçados, sobrelojas e casas de cômodo, situados no antigo centro de Salvador. Outros, especialmente os operários, disputavam espaço nos casebres e “avenidas” dos bairros fabris da periferia da cidade.

Reportagem veiculada em setembro daquele ano no jornal A Tarde informava que, no Paço, Pilar e Taboão, havia, no mínimo, um doente por casa. A Saúde Pública permitia que os acometidos fossem tratados em domicílio, desde que notificassem o inspetor sanitário do distrito e respeitassem as regras de higiene recomendadas, mas, segundo o articulista, condições como essas dificultavam o registro preciso do número de casos.

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A matéria informava ainda que 160 doentes de varíola encontravam-se internados no Hospital de Isolamento. Naquele mês o hospital ainda possuía capacidade para acolher mais enfermos, visto que contava com um total de 200 leitos. Caso se decidisse pela internação, os parentes do enfermo poderiam acompanhá-lo mediante o pagamento de diária estipulada pela Saúde Pública.

Segundo nota divulgada no jornal O Democrata, órgão de imprensa do grupo político que estava no poder, a Diretoria Geral da Saúde Pública estava fazendo sua parte para conter a epidemia. As medidas praticadas eram as de praxe: a vigilância e notificação dos casos; o bloqueio da doença, através da vacinação; o isolamento os doentes; a desinfecção e incineração das roupas do enfermo.

CENÁRIO MACABRO, DOENTES INFESTAVAM AS RUAS

Todavia, apesar de todos os esforços do governo do estado, em 24 de outubro, a primeira página do jornal O Imparcial estampava uma manchete inquietante: “Varíola! Varíola! A epidemia assume proporções horríveis. O isolamento transborda – os variolosos infestam as ruas”. A matéria informava que inúmeros doentes continuavam em suas residências sem os devidos cuidados. Como não havia leitos suficientes no Hospital de Isolamento para acolher todos os enfermos, muitos eram vistos perambulando pelas ruas e praças públicas da cidade.

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O quadro descrito nos jornais era macabro: doentes estendidos nas sarjetas, expondo as pústulas, impudicamente, “á luz do sol e á vista de todos” [sic] ou a gemer e a tossir, desesperadamente, sob as árvores dos jardins públicos, nos adros das igrejas, abrigando-se até nas escadarias das residências particulares.

Notícias como esta figuravam nas páginas de outros jornais da capital e revelavam a repulsa que exposição das vesículas, pústulas e crostas por todo o corpo do doente provocava, como também o medo do contágio e da morte, sentimentos próprios dos períodos de epidemias.

A doença, que desfigurava e vitimava familiares, amigos, colegas de trabalho, vizinhos de rua ou do bairro, constituía-se em uma ameaça próxima, concreta. Todavia, nem sempre a repugnância pelos sinais externos da doença, e o medo do contágio, próprio da necessidade natural de autopreservação, eram impedimentos para que as pessoas exercessem atos caritativos ou de solidariedade humana.

Em novembro, o estado era de calamidade pública. Em matéria publicada no jornal O Imparcial no dia 4 daquele mês, um articulista calculava que em apenas três dias haviam morrido cerca de 100 pessoas. Em vão, as pessoas solicitavam à Saúde Pública a retirada dos doentes de suas casas, já que o hospital não tinha mais capacidade para acolher mais doentes.

Houve dia de ali se encontrarem internados 540 doentes, com uma média de 25 internamentos por dia. O antigo lazareto também não dispunha mais de leitos, visto que 150 doentes já ocupavam os disponíveis. Além desses espaços, o governo do estado instalou uma enfermaria provisória na Rua do Baluarte. Em finais de outubro o jornal O Imparcial informava que o governo estadual cogitara adquirir uma casa no Largo da Boa Viagem para transformá-la em hospital, mas a informação não se confirmou.

Desnorteados, enfermos perambulavam pelas ruas, cadáveres amontoavam-se nas casas e nas vias públicas, sem transporte para levá-los às valas onde deveriam ser sepultados. Nota publicada no Diário de Notícias informava que pessoas que viajavam nos bondes da Calçada denunciavam que continuamente podiam ser vistos, ao abandono dos leitos das linhas dos bondes, cadáveres originários dos bairros do Alto do Peru, de São Caetano e de Pirajá. Esses bairros estavam situados na periferia da cidade e eram habitados, em maioria, por gente sem recursos, cujos mortos ali ficavam aguardando o transporte que os levaria ao cemitério.

Determinava a legislação que, em casos de óbito por doença infectocontagiosa, os ritos que acompanhavam a passagem para a outra vida deveriam ser suprimidos, o sepultamento deveria ser feito com rapidez e discrição, sendo proibido o acompanhamento do defunto por parte de amigos e familiares. O artigo 52, da Lei n. 1231 de 31 de agosto de 1917, estabelecia que transporte e sepultamento do féretro seguiriam as “devidas precauções” para evitar a possibilidade dos cadáveres “transmitirem ou dispersarem germens ativos de moléstias contagiosas”.

No cemitério das Quintas dos Lázaros, o movimento de carros  e bondes funerários era intenso. Às vezes, nem bem se tinha descarregado um caminhão com cadáveres de variolosos, chegava um bonde com outro tanto para sepultar. Os coveiros cavavam uma média de 40 a 50 covas por dia que, tão logo ficavam prontas eram imediatamente ocupadas. Houve ocasião em que o número de sepultamentos superou a média: 68 inumações.

Diante do número crescente de óbitos, os coveiros varavam a madrugada, mesmo assim, houve dia em que, pela manhã, os jornalistas que documentavam a epidemia flagravam cadáveres que ainda estavam insepultos e já em estado de decomposição. Para agravar o quadro, os coveiros, cujo trabalho aumentava em escala inversa à irrisória remuneração que recebiam, solicitaram ao governo estadual um aumento de salário, suspendendo provisoriamente suas atividades até que a sua solicitação fosse atendida.

Nesse período, um repórter do jornal A Tarde flagrara uma família que “andava em via sacra de cova em cova” a procurar “a sepultura de um parente querido”. Esforço baldado, segundo o jornalista, pois não havia número ou registro que a identificasse das demais. O número descomunal de sepultamentos verificado nesse período justificava a quebra de protocolo do cemitério.

A MORTE DESSACRALIZADA

Contemplar a morte despida de todos os rituais funerários tradicionais representava para aquela sociedade uma ruptura brutal  e desumana dos códigos socioculturais. A supressão da liturgia fúnebre, dessacralizava a morte, tornando-a ainda muito mais  temível. As práticas culturais relativas aos ritos que acompanhavam o adoecimento, o morrer e a morte ajudavam a digerir a perda, a extravasar a dor, conferiam identidade e ofereciam algum conforto e segurança aos que perderam seus entes queridos.

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas

A “peste” roubava o respeito devido aos mortos e o direito das famílias prestarem-lhes as homenagens devidas. Todavia, ainda que se abstivessem de velar o morto, rezar missa de corpo presente e acompanhar o féretro até a sua última morada, os católicos não se atreviam a negar a extrema-unção ao moribundo. Fotografia do vigário da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, levando o conforto da religião aos que se encontravam às portas da morte, publicada em A Tarde, atesta a prática.

As rupturas brutais impostas pela doença epidêmica à vida cotidiana e às relações sociais iam, paulatinamente, transformando a fisionomia de Salvador. A situação se agravara a tal ponto que deixou em suspenso a vida na cidade: o comércio fechado, as ruas quase desertas, visto que, temendo o contágio, as pessoas preferiam recolher-se aos seus lares.

Os poucos que se aventuravam fora de casa, traziam na face as marcas da doença. Esses, talvez, já se sentissem imunes à varíola, mas tal como os que ainda se sentiam ameaçados pelo mal, nutriam, certamente, sentimentos característicos dos períodos de crise epidêmica – insegurança, medo, ansiedade, angústia, desalento – provocados pelas transformações do cotidiano, pelas perdas e pelo assédio da morte.

Esse quadro de angústia e ansiedade não gerou, em Salvador, os distúrbios sociais, a histeria coletiva, nem a fuga dos lugares infectados, comuns às narrativas de eventos epidêmicos. Um repórter até insinuou que poderia ocorrer evento semelhante à “Cemiterada”, caso o governo insistisse em abrir valas para sepultar os variolosos em um campo de futebol existente no bairro de Brotas. A documentação consultada pelos autores não menciona se o projeto foi efetivado, mas durante o período não se registrou nenhum tipo de distúrbio relativo à epidemia.

Tela sobre a morte de uma mulher negra

“MORRA O CEMITÉRIO!”

A “Cemiterada foi um levante que começou  – conta João José Reis, em “A morte é uma festa” – como um protesto convocado pelas irmandades e ordens terceiras de Salvador, organizações que cuidavam, entre outras funções, dos funerais de seus membros. Centenas de pessoas marcharam pelas ruas da cidade, como uma procissão: com hábitos, capas, cruzes e as bandeiras de suas confrarias.

O caráter religioso dos participantes inibiu uma repressão mais efetiva dos poderes públicos. A população, em geral, ficou ao lado das irmandades e contra os cemiteristas. O cemitério era visto como uma ameaça à fé católica.

Houve discursos e um abaixo-assinado contra a companhia que havia ganhado o monopólio dos funerais e construído o Corpo Santo. A multidão invadiu o palácio, fazendo com que o presidente da Província suspendesse a proibição dos enterros nas igrejas até a realização de uma sessão extraordinária na Assembleia Provincial. Mas, isso não foi suficiente. A população enfurecida se dirigiu ao cemitério, munida de machados, barras de ferro e outros instrumentos usados nas obras do local.

Aos gritos de “Morra, cemitério!”, o local foi destruído em algumas horas. As instalações foram quebradas e incendiadas: portões, muros, grades, mármores para as lápides, coches, panos funerários, e até mesmo a capela – nada escapou da fúria dos revoltosos. Terminada a destruição, passou-se para o saque: as pessoas retornavam à cidade, levando nas mãos os restos dos materiais fúnebres. A polícia se manteve afastada. Muitos autores destacam os aspectos econômicos da revolta, pois, a nova lei retiraria parte da renda das irmandades e de outras instituições ligadas ao mercado “da morte”, esse dinheiro passaria às mãos da empresa privada responsável pelos enterros”.

ENTRE PROCISSÕES E APELOS AOS ORIXÁS

De volta ao segundo semestre de 1919, várias procissões percorriam as ruas da cidade entoando preces aos santos advogados contra pestes: São Roque, São Lázaro e São Francisco Xavier. Por sua posição na esfera celeste, os santos eram considerados intercessores poderosos, atuando como elemento de ligação entre Deus e o devoto. Vistos como aliados celestes do homem, os santos advogados eram invocados para mitigar as dores da alma, resolver problemas práticos da vida, curar os males do corpo e do espírito e eram frequentes as promessas para recuperar a saúde.

Em tempos de epidemia as imagens dos santos desciam dos altares para ficarem mais próximas das súplicas dos fiéis. Para o devoto, a proximidade física com os elementos do sagrado aumentava a sensação de conforto e proteção divina contra a peste e a morte súbita por doenças graves e contagiosas. Foi por isso que a antiga imagem de São Roque desceu do seu altar na Igreja do Bonfim e São Lázaro saiu da sua igreja, situada em bairro homônimo, na periferia, para ser exposta à adoração dos fiéis na Igreja de Nossa Senhora da Barroquinha, no centro da cidade.

Resultado de imagem para Obaluaiyê

A identificação dos santos católicos com os orixás do Candomblé pode ter contribuído para reforçar o apelo dos baianos ao Senhor do Bonfim, a São Roque e a São Lázaro. No paralelismo religioso, o Senhor do Bonfim é associado a Oxalá, considerado o pai de todos os orixás e dos seres humanos, aquele regula o fim da vida.  Já São Roque é associados à Obaluaiyê, moço e forte, enquanto São Lázaro é relacionado à Omolu.

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Fontes da matéria:

Christiane Maria Cruz de Souza, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA, onde integra o Núcleo de Tecnologia em Saúde e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências (UEFS/UFBA), também doutora em História das Ciências pela Fiocruz.

Gilberto Hochman Professor História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz, Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e do CNPq.

Márcia Pinna Raspanti – Jornalista pela Faculdade Cásper Líbero historiadora pela Universidade de São Paulo e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de História e Comunicação, com ênfase em História e Economia.