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Sob governantes incultos, Estado deixa de adquirir obras do mestre da Escola Baiana de Pintura

Documento elaborado para aquisição das peças durante gestão de Pedro Archanjo no MAB

Albenísio Fonseca

A história e a iconografia da Bahia acabam de perder a chance de adquirir o conjunto da obra de José Joaquim da Rocha (Salvador, 1737-1807), criador da Escola Baiana de Pintura. “O MAB-Museu de Arte da Bahia tem obras de quase todos os artistas da Escola Baiana de Pintura, mas não tem nenhuma do mestre fundador da escola inaugural de Arte no estado”.

Quando diretor do MAB, o sociólogo e fotógrafo Pedro Archanjo realizou uma pesquisa sobre o mestre e descobriu que um colecionador paulista possuía três telas de Joaquim da Rocha e um colecionador baiano possuía duas outras. Archanjo revela ter conversado com o colecionador daqui e diz que “ele gostou tanto da ideia que adquiriu as três telas do artista junto ao colecionador de São Paulo”.

Davi toca harpa; Sacerdote oferece pão e vinho; Sacerdote sacrifica um cordeiro, José Joaquim da Rocha, 1786

– Elaboramos, então, um projeto de aquisição dos cinco quadros e conseguimos aprovar a proposta através da Lei Rouanet. Mas, para tanto, e dada a complexidade da obra de Joaquim da Rocha, criei um grupo de trabalho com três especialistas em barroco baiano com ênfase na Escola Baiana de Pintura e, após análises físicas, os especialistas  atestaram a autenticidade das obras.

Pedro Archanjo revela, ainda, que “já dispúnhamos até mesmo da empresa patrocinadora. Mas o que ocorreu, logo em seguida, foi minha exoneração da direção do MAB, por obra e graça de ex-diretor do IPAC. Aconteceu, contudo, de o colecionador baiano, de família árabe, ter ficado magoado com minha saída e decidiu que não mais ajudaria o MAB a resgatar as peças, fundamentais para o acervo da instituição”.

LÁGRIMAS SOBRE TELAS

Ao tomar conhecimento, agora,  de que o MNBA-Museu Nacional de Belas Artes (que ocupa o histórico Palácio do Catete, no Rio de Janeiro) adquirira as peças, Archanjo confessa que “chorei”. – Sim, as lágrimas me vieram diante da magnitude das telas que compunham a maioria das obras de arte barroca expostas na Igreja de São Pedro, demolida pela sanha construtiva de J. J. Seabra, então governador da Bahia, para dar passagem às obras de abertura da Avenida Sete de Setembro, em 1913.

Procissão de transladação das imagens da Igreja, em 1912, antes da demolição autorizada por J.J. Seabra
para abertura da avenida Sete de Setembro

EM EXPOSIÇÃO, NO RIO

O Mestre do Barroco Baiano agora ganha evidência no Museu Nacional, que recebe, no Palácio do Catete, as importantes obras de um dos grandes mestres do barroco brasileiro. 

As obras, originárias da Igreja de São Pedro, foram compradas por particulares, tornando-se pouco conhecidas do público.

José Joaquim da Rocha – pintor, encarnador, dourador e restaurador baiano – pintou muitas peças de cavalete, mas suas composições mais famosas são os grandes tetos de igrejas, realizados sob a técnica da perspectiva ilusionística, organizando complexas estruturas arquitetônicas virtuais ornamentadas com guirlandas e rocalhas, que sustentam um medalhão central, onde aparece a cena principal do conjunto, em geral apresentando Cristo ou a Virgem Maria em situações glorificantes. 

Pintura da nave ou forro da Igreja de N. S. da Conceição da Praia, em Salvador,

Como foi a praxe do período Barroco em que atuou, a pintura deveria edificar o observador e instruí-lo nos preceitos da Igreja, fazendo uso de uma plasticidade suntuosa e atraente ao olhar, que através da sedução dos sentidos levasse o devoto à contemplação das belezas do espírito.

Apesar de já ter recebido a atenção crítica de vários especialistas de renome, o estudo de sua produção ainda carece de aprofundamento e muito ainda permanece no terreno da conjectura, em particular no que diz respeito à autoria, pois não assinou nenhuma obra e grande parte do que deixou é-lhe atribuído apenas com base na tradição oral, sem documentação corroborante, o que dificulta o entendimento da sua trajetória e estilo. 

A despeito dessas incertezas, a partir do que se conhece com mais segurança, José Joaquim da Rocha já foi reconhecido como artista de importância superior, considerado o fundador da Escola Baiana de Pintura, o maior de seus integrantes e um dos grandes mestres do Barroco brasileiro.

Ele deixou vários discípulos e influenciou duas gerações de continuadores, que preservaram princípios da sua estética até meados do século XIX.

Agora, o conjunto de cinco pinturas está incorporado ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes. As telas são: Alegoria Agnus Dei, Alegoria Pelicano, David com sua harpa, Sacerdote apresentando pão e vinho e Sumo Sacerdote de Israel.

Elas ficarão expostas, a partir desse 16 de agosto até outubro no Salão Nobre do Palácio do Catete, como parte do programa de intercâmbio de acervos do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram).

Conforme anunciado pelo portal TecnoMuseu, “as obras do Mestre José Joaquim da Rocha são provenientes de uma coleção particular, adquirida no âmbito do Projeto Movimento de Aquisição de Obras para Museus Brasileiros. Elas chegam agora ao Rio com o barroco do Mestre José Joaquim da Rocha”. 

A aquisição das obras, doadas ao Museu Nacional de Belas Artes, teve o patrocínio do Instituto Cultural Vale através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, do MinC. 

Os valores dispendidos nas aquisições, pela Vale, ainda não foram tornados público, mas a Bahia, de costas para as Artes e a Cultura, perdeu. #

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LAGOA DO ABAETÉ É DEIXADA À PRÓPRIA SORTE PELO PODER PÚBLICO

Pode ser uma imagem de uma ou mais pessoas, corpo d'água e texto que diz "IPHAN, IPAC E FGM se eximem de proceder o tombamento do Parque do Abaeté Albenísio Fonseca"

Os três principais órgãos responsáveis pela preservação do patrimônio, nas instâncias de poder federal, estadual e municipal – IPHAN, IPAC E FGM –, demonstram total inapetência para com o tombamento do Parque Metropolitano da Lagoa e Dunas do Abaeté, em Salvador, a exemplo do descaso ambiental promovido, como política pública, pelo Governo do Estado.

Acionado pela Defensoria Pública Federal, em 7 de novembro, para que viabilizasse, em 90 dias, o tombamento provisório da Lagoa do Abaeté e do Parque das Dunas, em Salvador, o superintendente do IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, na Bahia, Bruno César Sampaio Tavares,  somente responderia três semanas depois ao procurador-chefe do órgão, Guillermo Gonçalves.

Alegava, no ofício, ser “irrazoável” a conclusão do processo no prazo estipulado, “tampouco a efetivação do tombamento, mesmo em caráter provisório, dado que não há informações suficientes para a indicação de risco de desaparecimento do bem; tampouco existe a delimitação clara deste último”.

No âmbito municipal, instância junto à qual foi requerido o tombamento do Parque Metropolitano do Abaeté, em 2019, por proponentes representantes da comunidade, a diretora de Patrimônio e Humanidades da FGM-Fundação Gregório de Matos, a arquiteta com Especialização em Gestão Cultural dos Estados do Nordeste, pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, Milena Luísa, ao fazer referência à Lei 8.550 de 2014, avaliou durante audiência com associações de moradores que o pedido de tombamento do Abaeté pela comunidade, ambientalistas e ativistas sociais, apresenta-se como “adequado e pertinente”.

A técnica chegou a salientar, então, que “o patrimônio para fins de preservação é constituído por bens culturais cuja proteção deve ser de interesse público pelo reconhecimento social no conjunto das tradições passadas e contemporâneas”. A antropóloga esclareceu, inclusive,  que, “além do pedido de tombamento, a comunidade poderia solicitar também o registro no Livro Especial dos espaços destinados às práticas coletivas”.

Tomada de área do Parque do Abaeté a partir do mirante

SUSPENSÃO DO PROCESSO

Com processo já aprovado e encaminhado pela própria FGM para tornar o Abaeté patrimônio histórico e cultural de Salvador, surpreendentemente, em agosto de 2022, Milena comunicava a suspensão do procedimento, sob alegação de que tal intento  “somente poderia ser implementado pelas instâncias estadual ou federal”, sem apresentar, no entanto, o embasamento legal de tal atitude e com transferência do processo para o IPAC-Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, órgão subordinado à Secretaria Estadual de Cultura.  

Antes, ela já havia estipulado o quanto “o tombamento é, acima de tudo, um ato político”. Chegou a mencionar até mesmo o quanto “iria reforçar a questão da preservação da APA e o registro no Livro Especial promoveria o Plano de Salvaguarda que visa estabelecer políticas públicas para preservar todos esses elementos culturais que deverão ser mapeados, caso ainda não tenham sido, para devida instrução técnica”.

APROVAÇÃO POR UNANIMIDADE

Durante a aprovação da demanda, por unanimidade, em 1º de setembro de 2020, durante reunião virtual do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural da Fundação Gregório de Mattos – justificada por ser um “sítio natural sagrado com paisagem única composta por dunas, vegetação de restinga e lagoas associadas ao Bioma Mata Atlântica” – foi enfatizado o quanto o tombamento “somou-se aos apelos da população, técnicos e artistas ao Governo do Estado, via Conder-Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, contra a continuidade da construção de uma Estação Elevatória de Esgoto (EEE) às margens da Lagoa do Abaeté”.

Durante a reunião virtual, Milena chegou a estipular que “a Fundação Gregório de Mattos buscará fazer a instrução sumária com celeridade para que possa ser aberto o processo e dar ciência ao Ministério Público [do Estado da Bahia], a cerca desta abertura de processo e o pedido de que seja avaliada esta questão do que está ocorrendo e que a comunidade está chamando a atenção como não favorável às intervenções paisagísticas do Abaeté e a preservação deste patrimônio que é simbólico e muito importante para a nossa cidade”.

ALEGAÇÕES SÃO CONTESTADAS

Consultora jurídica informal das representações comunitárias, a analista Judiciária Marcele do Valle ressaltou o quanto “o interesse que deve prevalecer é o de que a natureza e a cultura, nesse caso do Abaeté, sejam cada vez mais protegidos. Ações e omissões (também uma forma de agir) do poder público têm diminuído cada vez mais a proteção do equipamento. Esse jogo de empurra está garantindo brechas para a exploração e degradação e fragilizando cada vez mais essas áreas”. Segundo Marcele, “a força dos instrumentos de proteção ambiental e do patrimônio histórico e cultural cada vez mais reduzida e desacreditada, junto com o poder público, é muito ruim para todos nós”.

Nesse sentido, Marcele enfatiza que “a FGM deveria compreender isso antes de descumprir a própria legislação pertinente. Não há a mínima previsão  legal que dê respaldo a essa “transferência” de estudos e documentos da FGM para o IPAC. No mínimo, obedecendo às leis 8.550 de 2014 e decreto regulamentar 27.179 de 2016, poderia caber à FGM indeferir o pedido de tombamento e disso ainda caberia recurso”.

– Como ficam, por exemplo, os proponentes do pedido de tombamento? E quanto à notícia de que o IPAC abriu processo de tombamento só do Parque das Dunas, a FGM não se “sente” responsável por isso? Deveria citar a legislação que embasou toda a argumentação. Porque eles têm dever público, não quero individualizar o ato, pois este pertence à instituição FGM. Essa fala, informando da transferência do processo para o IPAC é de uma servidora e me parece que ela se arriscou a falar por si, extraoficialmente, avaliou.

PARQUE DAS DUNAS TEM TOMBAMENTO PROVISÓRIO

Marcele do Valle contraria por inteiro o posicionamento da FGM. Segundo ela, “não existe nenhum impedimento para um ente tombar patrimônio sob gestão de outro. Essa é uma compreensão a respeito da hierarquia verticalizada, ou seja, de que um não poderia tombar patrimônio de outro, interpretação que já tem decisão desfavorável no STF. E olha que a ação que negou esse entendimento enfrentou a legislação federal que tem dispositivo quanto a desapropriação, mas aqui no estado e no município nem há  tal exigência”, arguiu.

Não. A FGM não respondeu o porquê de ter mudado a postura e o andamento do tombamento, não mais que de repente, e com transferência do processo para o IPAC. Não, o órgão estadual também não respondeu às perguntas encaminhadas. No Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural, a única informação obtida é a de que o órgão já implementou o “tombamento provisório” do Parque das Dunas, área circundante do Parque do Abaeté.

POLIGONAL, COM OU SEM OCUPAÇÕES?

Marcele do Valle é ainda mais pertinente quando questiona, a propósito, se as ocupações foram retiradas da proposta de poligonal do tombamento. Milena alega que havia dezenas de ocupações e que isso criaria problema na notificação. Do Valle entende que a alegação “não é verdade”:

“A instrução do processo que inclui definição da poligonal é atribuição da FGM. Então, a própria FGM já havia feito essa solicitação de fazer uma poligonal sem as ocupações”. Quanto ao município atuar de maneira complementar junto ao IPAC e Iphan, Marcele novamente ressalta que “a FGM deveria apontar a lei que toma por base”. E cita artigos da Constituição Estadual para demolir tal entendimento:

Art. 59 – Cabe ao Município, além das competências previstas na Constituição Federal:

VII – Garantir a proteção do patrimônio ambiental e histórico-cultural local, observada a legislação federal e estadual;

IX – Legislar, em caráter suplementar, para adequar as leis estaduais e federais às peculiaridades e interesses locais.

Parágrafo único – O Município exerce, no âmbito de seu território, as competências comuns com a União e o Estado, previstas na Constituição Federal e nesta Constituição.

PROPONENTES E FORMAÇÕES LACUSTRES

O pedido de tombamento ao Município de Salvador foi assinado pelo Fórum Permanente de Itapuã, Abaeté Viva, Guardiões do Abaeté, Ganhadeiras de Itapuã, os Terreiros Abassá de Ogum e Ilê Axé Oba Iju Inã, Colônia de Pesca Z-6, os movimentos Nosso Quilombo e Jaguaribe Vivo, Programa Raízes dessa Terra, Associação Quilombola Kingongo do Quilombo Kingoma, GT Pedra de Xangô, Projetos Parques em Conexão e pelo Instituto Búzios.

A Lagoa do Abaeté é um dos ícones mais sagrados de Itapuã, havendo diversas lendas a seu respeito. Por muito tempo, a lagoa foi uma das principais fontes de renda das pessoas do bairro, que a usavam para pescar e lavar roupas, além de ser um lugar onde até hoje acontecem diversas manifestações artísticas e religiosas. A lagoa tem águas escuras em forma de um funil.

Segundo moradores, possui diferentes níveis de temperatura que não se misturam: em cima, a água tem temperatura natural; no meio, a água é quente e, no fundo, é gelada. Seu fundo, formado por sedimentos e areia, costuma ser descrito como “pegajoso”. Antes, a Lagoa era rodeada por frondosos cajueiros e outros tipos de árvores que foram desmatadas com o tempo. Devido às construções que começaram a ser erigidas em seu entorno e à mudança do seu ecossistema, a Lagoa tem diminuído de tamanho progressivamente.

Além da Lagoa do Abaeté, outras famosas na área são: a Lagoa Dois-Dois, uma lagoa temporária que apresenta água transparente, a Olhos D’Água e a Cacimba, que viraram posteriormente nomes de rua, e a Barragem, que era a antiga fonte de água potável para a região. Outras lagoas são: Urubu, Abaeté – Catu, do Toco, das Trincheiras, dos Pombos, das Casas, do Core, da fonte da Praia, dos Milagres e do Canal.

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A face revolucionária do futebol

Albenísio Fonseca

O único delírio coletivo permitido no Brasil, além do Carnaval, é a conquista da Copa do Mundo. Espetáculo coletivo, o futebol torna-se ritualístico na medida em que identifica os espectadores com o drama que se desenrola em campo. Os jogadores são como personagens de teatro com os quais nos identificamos numa relação ritualística (espetacular) em que o campo se converte num grande teatro de arena. Visto de forma simbólica, emocional e arquetípica, o futebol é uma confrontação de opostos durante a qual inúmeras emoções são elaboradas, soltas, exercidas e domesticadas.

As origens do futebol perdem-se nos subterrâneos da História. Iniciado na Inglaterra, provavelmente a partir do harpastum, jogo de bola com as mãos trazido pelos romanos da Grécia, há também a hipótese de que tenha-se originado do costume primitivo de chutar a cabeça dos inimigos para comemorar vitórias. Existe ainda a informação do futebol jogado nas terças-feiras de Carnaval em Chester, cidade inglesa fundada pelos romanos.

É possível relacionar pelo menos quatro razões para afirmar o futebol como um jogo revolucionário. Por sua associação ao Carnaval, festa visceralmente ligada à liberação das emoções e instintos. Por ser jogado com os pés, numa contrapartida para com as atividades sociais organizadas e praticadas sob o controle das mãos. Por ser um esporte coletivo e, desse modo, contrariar os esportes individualistas das elites. E, ainda, por dirigir as emoções do povo para uma disputa que acaba bem, ao contrário dos torneios que terminavam com a morte de um dos contendores.

O futebol registra episódios surpreendentes, como o de uma guerra entre a Inglaterra e a Escócia, em 1297, acabar desmoralizada porque os soldados de Lancashire, tradicionais inimigos dos escoceses, desobedeceram a seus comandantes e preferirem disputar sua rivalidade no futebol, ao invés de guerrear.

A face revolucionária do futebol diante do padrão patriarcal acabou por gerar sua repressão legal na Inglaterra, por razões militares de Estado, a partir do século 14, e motivo de ampla legislação proibitiva até o século 16. Mas o esporte floresceria e se difundiria por todas as culturas pelas mais diversas vias. Ao nos identificarmos com os jogadores nesse ritual dramático, sentimos que eles realizam por nós proezas físicas e psíquicas, que nos gratificam profundamente. Se as proezas físicas são maravilhosas de ver, as psíquicas são partilhadas e usufruídas. A imprevisibilidade do jogo faz com que toda sorte de emoções surja entre os heróis e o gol (jogadores de futebol são heróis do povo e o goleador o maior deles).

“A ação dramática transcorrida nos 90 minutos é um símbolo transfigurado do processo de luta pela vida para atingir nossas metas. Como o gol adversário (a meta) é defendido por um time igual ao nosso, para atingi-lo temos que nos defrontar com emoções intensas e atravessá-las pelo drible, pelo controle da bola, intuição, planejamento, ação conjunta, malícia, velocidade, tudo enfim que há de humano contra tudo humanamente igual”. Quem discorre é o analista junguiano Carlos Byngton em Nos conflitos simbólicos da alma coletiva, in “Em campo, futebol e cultura”, págs. 28 a 47; Ed. SP Cultura – Agosto de 1982.

– O futebol lida com emoções da maior importância, como a agressividade, a competição, amizade, rivalidade, inveja, orgulho, depressão, humilhação, fingimento e traição, entre tantos outros. O exercício da ética no futebol é tão evoluído que trouxe até mesmo a codificação de não se marcar uma falta que beneficie o infrator. Também a regra do impedimento, que proíbe receber por trás da defesa, delimitando física, espacial e dramaticamente situações de lealdade no confronto direto, e de traição no atacar por trás.

As emoções elaboradas pelos jogadores correspondem, simultaneamente, às vividas pelos torcedores. Um time que se lança ao ataque ativa a coragem e a ambição do torcedor. As tentativas de invasão de área e realização do gol podem, de logo, ser invertidas num contra-ataque.

No mais, devemos acompanhar os jogos de campeonatos, várzeas ou nas Copas do Mundo, com um esforço de consciência para compreender seus símbolos e exercê-los, não só no âmbito das suas arenas, mas em todas as instâncias da política e da cultura.

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Albenísio Fonseca é jornalista

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Pedro Labatut, a face oculta da história de um anti-herói

Albenísio Fonseca

Pierre Labatut (Cannes, 1776 – Salvador, 1849)

Alguma coisa está fora da ordem no panteon histórico dos heróis nacionais, no tocante ao heroísmo decorrente das lutas pela independência do Brasil do jugo português, na então província da Bahia.

A nomeação do brigadeiro francês Pierre (dito Pedro) Labatut pelo príncipe regente Pedro I, em 9 de julho de 1822, sob o status de “general”,  para o enfrentamento das tropas comandadas pelo brigadeiro Ignácio Luiz Madeira de Mello, que resistiam às lutas pela libertação da Colônia em terras baianas, resultaria na primeira revolta interna no Exército nacional, ainda em formação.

Fosse por “não ser um militar” (conforme mencionado pela imprensa da época que o designava como “mercenário”), ou pelo fato de ser estrangeiro e ocupar a função quando havia brasileiros capazes de desempenharem tão árdua missão, além do seu caráter autoritário, a presença de Labatut na historiografia brasileira é um tema a ser revisto. Já no Rio de Janeiro, de onde saiu a 14 de julho, oficiais de artilharia fizeram-lhe manifestações de desagrado, instaurando a divergência entre o general e seus comandados”.

O principal fato que antecede as lutas pela Independência, em terras baianas, decorre do embate pelo controle militar da província e frente à nomeação do então coronel Madeira de Mello, promovido pelo governo de Lisboa, em 15 de fevereiro de 1822, ao posto de comandante das Armas na Bahia.  O comandante das Armas, em exercício, general Manoel Pedro de Freitas Guimarães, baiano, bem como o governo provisório da província, todavia, se negam a reconhecer a nomeação, alegando ausência de formalidades em documentos dessa natureza. Exacerbado, Madeira convoca, então, os oficiais de todos os corpos e fortalezas, exigindo o reconhecimento da sua autoridade, no que foi satisfeito pelos elementos portugueses. 

Ilustração mostra a invasão do Convento que levou à morte da sóror Joana Angélica

Nos dias 16 e 17, as tropas ficaram de prontidão, cada qual assumindo suas posições. O terror apoderou-se da população. Paisanos brasileiros e portugueses reuniam-se para auxiliar as tropas, tomando partido. No dia 20, com as arruaças promovidas por soldados portugueses, ocorre a invasão do convento da Lapa com a morte, por baioneta, da sóror Joana Angélica ao tentar conter os invasores.

Madeira de Mello dispunha de um exército superior a cinco mil homens, equipados e municiados. Contava, ainda, com esquadra relativamente poderosa, composta de 17 navios de guerra, 70 embarcações mercantes e 396 canhões. A esquadra brasileira, somente mobilizada meses depois e sob comando do almirante Cochrane, dispunha apenas de oito navios de guerra e 242 bocas de fogo.

JORNALISTA DENUNCIOU A FARSA 

Todos esses affairs, já demarcados historicamente, foram registrados, inicialmente, pelo jornalista baiano Manuel Querino (1851-1923) em artigos publicados na Revista do IGBH – Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, em edições de 1913 e 1923: No primeiro, crava: “… Bem certo é que não fora ele [Labatut} o escolhido para tão espinhosa tarefa e sim o brigadeiro Domingos Alves Branco Muniz Barreto, baiano, que gozava de real prestígio entre os seus camaradas e o qual só fora substituído em consequência da poderosa intervenção de José Bonifácio, por solicitação do frei Francisco de São Paulo”.

Querino não poupa palavras para descrever o francês, embora reconheça tratar-se de um “bravo e disciplinador; mas de um rigor que tocava à desumanidade”. O jornalista menciona a filiação de Labatut “à escola do Conde Lippe” e enquanto “apreciador das proezas de Frederico II da Prússia. Sendo mal recebido pelos seus subordinados, não mediu consequências no seu poderio: Mandava fuzilar sob qualquer pretexto não só a militares, mas também a quem quer que fosse”, como nos casos de pobres escravizados, inapelavelmente mandados fuzilar, porque pertenciam a portugueses, e como se diria de um gesto benevolente para com as mulheres, eram apenas surradas”. 

Na Bahia, ainda em 1822 e antes mesmo do brado de “Independência ou morte”, em 7 de setembro, por Pedro I, as primeiras divergências do general ocorrem com a Junta Governativa de Cachoeira (cidade do Recôncavo para a qual acorreram centenas de pessoas fugidas dos embates em Salvador e onde se deu a rechaça inicial aos portugueses em 25 de junho), pretendendo desautorizá-la. 

Os oficiais de qualquer graduação ele prendia, por qualquer fato simples, não escapando da sua ira o próprio Visconde de Pirajá, ídolo do povo baiano. “Cheio de ódios, como estava, não podia continuar numa empresa tão delicada”, demonstra Querino. Caberia ao tenente-coronel Falcão de Lacerda consentir, então, que prendessem Labatut, que estava em seu acampamento, sem a menor resistência, tal o descontentamento que existia”.

Como relata o jornalista, “o coronel Felisberto Gomes Caldeira era o desafeto mais ostensivo e, por isso, o alvo das iras de Labatut, que, de mais a mais, fora instigado pelo carmelita frei José Maria Brayner, comandante do batalhão de Couraças. O Exército permanecia obediente pelo terror e solapado pela desafeição ao seu chefe.

A Batalha de Pirajá, tela de Carybé

LABATUT NÃO ESTEVE NA BATALHA DE PIRAJÁ
Preso Labatut, e destituído do comando, seguiu para o Rio de Janeiro com o fim de defender-se das acusações que lhe imputavam, continuando o Exército, mesmo dividido, nas operações de guerra, até o desenlace desejado, a obtenção da nossa autonomia política. Em suma, e ao contrário do que fazem crer as homenagens prestadas na Bahia, com busto e memorial erguidos ao francês, ele fora retirado do teatro bélico dos acontecimentos e sequer participou da Batalha de Pirajá (em 8 de novembro de 1822), evento determinante para a vitória dos patriotas.

O episódio registra, ainda, a historicamente controversa façanha do corneteiro Lopes (um português integrado às forças brasileiras) que, sob ordem do comandante Barros Falcão de tocar “recuar”, diante do que se mostrava uma inevitável derrota frente aos portugueses, após quatro horas de combates, tocou “avançar” e, em seguida, “cavalaria, degolar”, o que desnorteou o inimigo e levou os nacionais ao triunfo com a fuga dos comandados de Madeira de Mello. As tropas imperiais sequer dispunham de cavalaria.

Madeira de Mello (Chaves, 1775 – 1833)

Como demonstra de forma cabal Manuel Querino, “é uma injustiça destacar-se a figura de Labatut, como astro de primeira grandeza, no primeiro plano dos acontecimentos heróicos, deixando na penumbra, em posição secundária, outros mais emblemáticos. Coube ao general Lima e Silva, por exemplo, que substituiria Labatut no comando, a glória de terminar a guerra e de entrar triunfante na cidade, com seu Exército Pacificador, em 2 de Julho de 1823”.

O jornalista ressalta não desconhecer o prestígio militar de Labatut: “Ele encontrou as tropas sem disciplina, não era um Exército propriamente dito, mas uma falange de patriotas dedicados ao serviço da liberdade; meros paisanos que desconheciam a organização. O general adestrou-os, instruiu-os, deu-lhes a orientação necessária, mas também abusou tanto do seu poder a ponto de não aceitar a menor observação da Junta Governativa, que era o governo reconhecido por Pedro I, o imperador”.

“Se a junta nomeava um oficial, ele não aceitava; dirigia o Exército discricionariamente, apenas ouvia e em tudo concordava com seu secretário e ajudante. Labatut  começou a dar provas de seu gênio atrabiliário logo que fora investido no comando: além de atos de despotismo praticados a bordo do navio em que viajava, contra oficiais distintos. Em Maceió, cercou a casa do cônsul inglês, fazendo arrombar as portas a machado, atacando assim o asilo sagrado do cidadão [e da diplomacia]. Em Sergipe, fez depor a Junta Provisória que tinha aclamado a regência; promovia subalternos a oficiais, por afeição, com acintosa preterição dos que se haviam já distinguido na peleja; convidou para seu secretário um afamado cirurgião de compostura duvidosa”.

– De uma feita, reuniu 51 escravos, somente por pertencerem a portugueses, e mandou fuzilá-los, com a maior desumanidade; casava, descasava, negociava com [contrabando] pau-brasil, declarando-se ditador e alegando possuir carta branca do monarca. Abriu luta com a Junta Governativa de Cachoeira por esta querer conhecer a importância total dos valores arrecadados no engenho da Passagem e a cometer uma série de abusos que descontentava a todos. Nestas condições, o general estava impossibilitado de continuar no exercício das suas funções.

O ESTOPIM DO FIM

O estopim do fim do general francês à frente das forças brasileiras seria aceso em 20 de março de 1823, quando mandou chamar à sua presença, a objeto de serviço, o coronel Felisberto Caldeira. Ao apresentar-se, Labatut deu-lhe voz de prisão. Um dos seus apologistas (Querino não menciona o nome) ao comentar o fato, assim se externou: 

“Não era, nem devia ser, pensamos nós, essa prisão efetuada traiçoeiramente, mas ele temeu que a divisão do comando com Felisberto rompesse em hostilidade, opondo-se à sua prisão; entregou-se, perdeu o prestígio do chefe, e querendo obstar a guerra civil, como julgava, sacrificou-se, só havendo um homem, o carmelita Brayner, comandante do batalhão das Couraças, que quis levantar-se em favor de Labatut, que tinha ficado inteiramente desmoralizado; porque o poder que cede é poder que se suicida; o poder deve cair da sua altura, com honra, qualquer que seja a sua queda”.

Espalhada a notícia da prisão de Felisberto Caldeira, o Exército alarmou-se, Lima e Silva estremeceu e fez ponderações que não foram aceitas por Labatut, que se preparou para reagir sem elementos. No dia imediato, reuniram-se em conselho todos os oficiais das brigadas do centro e da direita do Exército, para deliberar sobre o assunto, quando chegou a notícia da prisão de Labatut, sendo Felisberto posto em liberdade e nomeado comandante-chefe o general Lima e Silva, pelo governo interino, que Labatut não queria considerar. 

No estudo biográfico sobre o militar francês, para muitos um “mercenário”, J. Brígido afirma que “as formas grosseiras e as noções mui superficiais de governo que tinha o general, não eram de vez para a pronta solução do problema baiano”. E acrescenta, referindo-se aos fuzilamentos: “A brutalidade de Labatut bem mereceu os ultrajes e amarguras que lhe estavam por diante; mas naquele instante não despertou a execução dos patriotas”.

Dada a grande proteção que o acobertava, o governo imperial viu-se na contingência de, por decreto, somente em 5 de fevereiro de 1829, mandar eliminá-lo do quadro do Exército, determinando sua retirada, em seis dias, do território brasileiro. Contudo, ele ainda seria nomeado pela Regência para servir no Rio Grande do Sul durante a Guerra dos Farrapos, mas, por contrariar as ordens recebidas, viria a ser demitido em 1841, sendo submetido a conselho de investigação em virtude de acusações que lhe fizera o general chefe das forças. Labatut, do mesmo modo, bem antes, já havia sido excluído das tropas napoleônicas, durante guerra na Província Ibérica, e por Simón Bolívar, quando servia no Exército da Colômbia.

Panteão guarda restos mortais de Labatut, em Pirajá

O COMUNICADO DE LIMA E SILVA A COCHRANE

Uma síntese fundamental, para maior clareza sobre a face oculta desse anti-herói, é o comunicado do general Lima e Silva ao almirante Cochrane, quando da sua nomeação como comandante chefe do Exército após a prisão e consequente afastamento de Labatut:

“Ilmo. Exmo. Ocorrências extraordinárias e filhas de atos pouco pensados do general Labatut tem feito mudar repentinamente a face do quartel-general deste Exército, sem que contudo se tenha mudado o caráter de fidelidade e firme adesão ao sistema jurado pelos comandantes, oficiais e soldados que o compõem. Pelas precipitadas medidas do general Labatut e por suas ordens não refletidas, espalhou-se o descontentamento em todo o Exército, e com especialidade na brigada de esquerda a prisão de cujo comandante havia ele ordenado e feito verificar no dia 20 do corrente; seguindo-se a ela o rumor de que a dita brigada tinha a pretensão sobre a liberdade de seu comandante, o general, entregue ao furor do seu gênio e esquecido da prudência que convinha em tal negócio, se propôs a atacar e suplantar pela força aquela referida brigada, o que, vindo ao conhecimento dela, pegou em armas no dia 21 e fez depor e prender à ordem do imperador, o general. Quartel-general em Pirajá, 27 de maio de 1823”.

Busto de Labatut na Praça da Lapinha, em Salvador

A pergunta que resta não teria porque divergir em nada da emitida por Manuel Querino em seu artigo de 1913 na Revista do IGHB: 

“Por que essa glorificação especial [a Labatut]  quando existe um monumento reconhecendo os serviços de todos os heróis da Independência?” Diante de tamanho registro a desvendar a farsa histórica, por que insistem os governantes (sob tal contradição do cerimonial da Festa do 2 de Julho) em depositar coroa de flores no seu busto instalado na Lapinha e a promover romaria anual ao injustificado túmulo dele, em Pirajá, sem que sejam prestadas iguais homenagens aos demais e verdadeiros heróis empenhados nas batalhas? 

Afinal, para que não mais se turve a história, frise-se que não coube a Labutut ser o iniciador das contendas e sequer lhe coube a glória de terminar a vitoriosa luta, embora tenha carregado consigo um inapagável rastro de sangue.

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Albenísio Fonseca é jornalista


Destaque

A nova “alvorada voraz” da Cultura

 Filósofo, militante político e psicanalista francês, Felix Guattari foi aluno e paciente de Jacques Lacan, antes de romper com ele. Inventor da esquizoanálise, junto com Gilles Deleuze, clinicou durante muitos anos na célebre clínica La Borde

Albenísio Fonseca

Seja dentro ou fora do discurso antropológico, a palavra cultura relaciona-se com as práticas de organização simbólica, de produção social de sentido e de distinção social pela sensibilidade. 

Seu sentido mais antigo, entre os vários que teve e por todo o decurso histórico, é o que aparece na expressão “cultivar o espírito”, entendida por um filósofo e psicanalista como o francês Felix Guattari (1930-1992) – no livro “Micropolítica – cartografias do desejo”, com artigos, cartas, palestras, entrevistas e debates organizados pela psicanalista Suely Rolnik, quando da segunda estada dele no Brasil, em 1986 – como “cultura-valor”, por corresponder a um julgamento de valor que determina quem tem e quem não tem cultura; os que pertencem a meios cultos ou a meios incultos.

Um segundo núcleo semântico, no entendimento de Guattari, corresponde à “cultura-alma coletiva”, sinônimo de civilização. Aí já não se trata de ter ou não ter: todo mundo tem cultura, qualquer um pode reivindicar sua identidade cultural, no que constitui uma espécie de “a priori” da cultura. “

O terceiro núcleo semântico proposto por Guattari, compreende a cultura de massa, ou ao que ele chama de “cultura-mercadoria”. Nesse caso, “já não há julgamento de valor, nem territórios  coletivos da cultura, mais ou menos secretos. A  cultura são todos os bens, todos os equipamentos, todas as pessoas, todas as referências teóricas e ideológicas relativas a esse funcionamento, enfim tudo o que contribui para a produção de objetos, como discos, livros, filmes, etc… difundidos num mercado monetário ou estatal”.

MERCADO DE PODER

Todavia, a cultura não é apenas o processo da transmissão de informação cultural, de sistemas de modelização, é também uma maneira das elites (ou pretensas elites) capitalistas exporem o que se pode denominar de um “mercado geral de poder”. Não apenas sobre os objetos culturais ou sobre as possibilidades de manipulá-los e criar algo, mas de poder atribuir a si os objetos culturais como signo distintivo das relações sociais, da relação com o outro. 

Nessa cartografia, ou mapeamento do que seja cultura com base nas investigações levadas a efeito por Felix Guattari sob concepção pós-moderna, “o conceito de cultura é profundamente reacionário. É uma maneira de separar atividades semióticas (de orientação no mundo social e cósmico) em esferas às quais os homens são remetidos. Tais atividades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotização dominante – ou seja , simplesmente recortadas de suas realidades políticas”. Não existe, de acordo com o analista francês, cultura popular e cultura erudita . Há uma cultura capitalística (ele introduz o sufixo “ístico” para tornar o termo mais abrangente) que permeia todos os campos de expressão.

“ART IS MONEY”

 “No fundo, só há uma cultura: a capitalística. A cultura enquanto esfera autônoma só existe em nível dos mercados de poder, dos mercados econômicos, e não em nível da produção, da criação e do consumo real”. Algo que nos remete imediatamente à famosa prescrição do artista pop norte-americano Andy Wharol: “Art is money”.

Para Guattari, “o que caracteriza os modos de produção capitalísticos é que eles não funcionam unicamente no registro dos valores de troca, funcionam também através de um modo de controle da subjetivação”. Desse ponto de vista, o capital funciona de modo complementar à cultura, enquanto conceito de equivalência: “O capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva”. Levando-nos à conclusão de que “é a própria essência do lucro capitalista que não se reduz ao campo da mais-valia econômica: ela está, também, na tomada de poder da subjetividade.

A realidade é que, na matriz da comunicação e da informação, o cultural tornou-se em instrumento puramente operador de fluxos. Ou seja, através da inserção de conteúdos lúdico-culturais, os mídias oferecem oferecem produtos híbridos de entretenimento e de referência à cultura burguesa clássica, cujo objetivo primordial, ou sua estratégia politica global, visa essencialmente a atuar como dispositivo de mobilização e integração administrada das populações.
 
Hoje, sem conseguir gerar por si própria valores de legitimação, a estrutura da economia capitalista volta-se para a esfera da cultura como um meio de fornecer aos diversos grupos sociais modelos universais de comportamento como meio de organizar as massas. 
Vale acrescentar que os mass-mídia, de maneira geral, estão vinculados estreitamente à organização monopolista do mercado. Industrialmente produzida e distribuída, a cultura constitui na verdade um jogo destinado a instituir novas formas de poder.

NATUREZA INDUSTRIAL

Em lugar de ideologia, Felix Guattari prefere falar em subjetivação, ou melhor, em produção de subjetividade. Ao contrário de toda uma tradição da Filosofia e das Ciências Humanas que nomeia o sujeito como algo do domínio de uma suposta natureza humana, ele propõe a ideia de uma subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja,  essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida.
 
Essas máquinas de produção da subjetividade variam. “Em sistemas tradicionais é fabricada por máquinas mais territorializadas, na escala de uma etnia, de uma corporação profissional, de uma casta. Já no sistema capitalístico, a produção é industrial e se dá em escala internacional”.

– Assim como se fabrica leite em forma de leite condensado, com todas as moléculas que lhe são acrescentadas, injetam-se representações nas mães, nas crianças. A organização tecnoburocrática reproduz a sua própria imagem, sua grandiosa autoimagem de uma utopia tecnológica, formando a partir dela sujeitos-consumidores.


Essa gestão do espaço social, através de efeitos de fascinação, corresponde a uma sociedade fundada não mais numa ética do trabalho material, mas da produção psíquica, instituindo um capitalismo cognitivo. O que os atores dessa nova cena social necessitam é dar-se conta, com base nessas teorias da subjetividade, dessa realidade já dada do novo modelo organizacional do mundo, em uma sociedade regida pelos signos.

No que pese essas questões estarem sendo mantidas à distância da pretendida polêmica de resgate da cultura no Brasil, diante de tantas ameaças e desmontes promovidos pelo governo Bolsonaro, é necessário salientar que um projeto não assegura o funcionamento efetivo de um poder.

Se vivemos, hoje, simultaneamente, entre o desmonte de políticas culturais e sociais, o descaso administrativo dos bens culturais e uma telerealidade orquestrada por mecanismos tecnonarcísicos implementados pelos mass-mídia (a televisão, em particular) e face à hegemonia das redes sociais na Internet – seria salutar que instituições da sociedade civil pudessem contrabalançar tais influências, oferecendo alternativas culturais diversas da cultura midiática do entretenimento.

É imprescindível apenas que tais instituições realmente existam e se manifestem como polos geradores de fins sociais, sob pena de, inapelavelmente, verem-se anexadas pelos simulacros dessa nova ordem industrial do consumo, enquanto seguimos em renovada busca de uma nova “alvorada voraz” para a Cultura no Brasil.