Museu das Jangadas, um baluarte na praia do Flamengo

O que resta das jangadas é preservado na praia do Flamengo, no Litoral Norte de Salvador

Albenísio Fonseca

Frente às manchas de óleo que atingem o litoral do Nordeste, elas já não saem ao mar, como na “Suíte do Pescador” de Dorival Caymmi, mas um Museu das Jangadas, no limite Norte da faixa litorânea de Salvador, na praia do Flamengo, entre coqueirais, resiste bravamente, como se diria de um baluarte, uma fortificação inexpugnável, mantendo viva a tradição do mais primitivo equipamento de navegação e fundamental na sustentabilidade decorrente da atividade da pesca. Sim, sob o Sol e ao mar aberto.

Francisco Alves Santos, o Chico Pescador, 76 anos, já aposentado, cumpre diariamente, com sua bicicleta, a rotina de amanhecer, faça chuva ou Sol, sobre o lugar que consolidou como um Museu das Jangadas. A ideia surgiu logo após a decisão que levou à derrubada das 353 barracas de praias na Salvador de 2010.

O museu ainda é mantido como uma “capatazia”, termo já substituído por “posto avançado” da Colônia de Pescadores de Itapuã, ou Z-6, à qual está vinculado, a exemplo de outros postos avançados existentes nas praias da Rua K, da Sereia, de Piatã e até da Pituba, com cerca de 700 filiados, atualmente. Além das tradicionais canoas, barcos de alumínio e fibra vêm substituindo, há pelo menos 20 anos, as antigas jangadas.

As demolições, determinadas pelo juiz Carlos D’Ávila, da 13ª Vara da Justiça Federal, foram iniciadas justamente pelas barracas existentes no Flamengo. Chico recorda o confronto com os prepostos da Prefeitura na defesa das jangadas que ocupam a pequena faixa de areia naquele trecho. “Eles queriam passar o trator por cima de tudo e tive que me colocar à frente para impedir a agressão contra um patrimônio dos pescadores. Se quiserem destruir as jangadas terão que passar por cima de mim”, disse no ato de resistência.

Chico Pescador, em esforço solitário, luta para manter viva as jangadas de Salvador

HAVIA 40 JANGADEIROS, MAIORIA JÁ MORREU

Chico revela que atuavam, ali no Flamengo, ao menos 40 jangadeiros, dos quais recordou “Edinho, Mário, Coringa, Assídio, Cumpadinho, Joãozinho, Pai Velho… mas a maioria já morreu”. Segundo ele, a madeira para a construção de jangadas é encontrada em áreas de Mata Atlântica, inclusive em Lauro de Freitas e Simões Filho. Ele cita como uma bem apropriada a “tamba em pé, espécime cujas folhas lembram as do tamarindo”.

– Deixaram que as árvores com que se faziam as jangadas de pau, especialmente a ‘piúba’, ou pau-de-jangada, fossem parar na lista das espécies em extinção – queixou-se. Apesar do claro sinal de alerta, são raros os plantios para tentar salvar a árvore. Ao contrário, como se pode verificar no Nordeste estão destruindo o que resta delas.

Uma escultura de jangada é marcante na Colônia do Rio Vermelho

No Núcleo da Mariquita da Colônia de Pesca do Rio Vermelho (Z-1) a jangada foi tornada em peça decorativa. “Restam jangadas indo ao mar apenas em Buraquinho e no Porto de Sauípe”. O pescador recorda, ainda, nomes de pedras que serviam de referência para a navegação: “Rachada, Correnteza, Buraco redondo”. Entre os “peixes bons” trazidos das pescarias, mencionou a “arraia, o mero, cavala e beijupirá”.

LOCAL É DOS PESCADORES, HÁ 77 ANOS

Segundo ele, o local da Capatazia “é ocupado por pescadores há 77 anos. Herculano, administrador da fazenda de Bartilotti, foi quem doou o terreno na praia”. Ali existia uma construção que servia de abrigo, mas o próprio pescador decidiu por demolir. “Estava sendo ocupada por usuários de drogas”, alega para justificar a decisão.

Chico, que não frequentou escola, ficou viúvo aos 55 anos e criou sozinho os três filhos, mencionou nomes de lugares bastante piscosos, como Pesqueiro Grande, Vara Comprida, Reguinho e Boqueirão, ao longo da costa, a partir de Itapuã, que já não se mantêm com tais denominações. – Naquela época tínhamos quatro jangadas de pano, que permitiam embarcar até quatro pescadores e outras seis mais simples, para no máximo dois, recorda o pescador.

Chico Pescador mantém o posto avançado como uma Capatazia

Atualmente, sem dispor de qualquer apoio, as seis embarcações que restam vêm sendo destruídas pela intempérie e por cupins. O Museu das Jangadas parece condenado a exibir por curto período a arte e técnica de mobilidade náuticas cada vez mais em extinção. Para Paulo Vicente Demian, estudante de museologia da UFBA, o “museu na praia não deixa de simbolizar, como uma metáfora, o abandono consagrado nos demais museus do estado mantidos sem orçamento pelo Governo”.

TUDO EM VOLTA ERA FAZENDA

Se Itapuã foi, inicialmente, ocupado por uma colônia de pescadores proveniente de uma armação para pesca de baleias jubarte, Chico Pescador ressalta que “no trecho entre Stella Maris e Flamengo tudo em volta era ocupado por fazendas. Como a de Bartilotti, as de Mateus Maia, Damião de Souza e Juventino Silva – cuja casa de farinha é onde hoje se encontra o Colégio Sulmericano”, diz traçando um mapa imaginário do lugar.

“Nos anos 80 ainda não havia nada, nenhuma estrada, nenhum sistema de transporte interligando esse trecho com o Centro da cidade. O que existia eram barcos que transportavam carvão de Arembepe e Monte Gordo para a feira de Água de Meninos e, depois, para a de São Joaquim – e que levavam e traziam também famílias entre os passageiros”, relata.

ELEMENTOS ARTESANAIS, QUALIFICAÇÃO, ORGULHO

Nascido em Monte Gordo, filho de um pescador que teve seis embarcações, Chico já foi servente de obras, ajudante de pedreiro e tornou-se armador de ferragens, qualificação que lhe permite ostentar com orgulho a participação em construções de pontes e muitas edificações. Conforme Chico Pescador, “todos os elementos da jangada tradicional são feitos artesanalmente, desde o mastro à vela, das cordas ao banco de navegação, redes de pesca, anzóis, âncora e samburás (cestos para guardar peixes e pertences)”.

Ele fez ver o quanto nas versões da jangada tradicional – ou seja, o modelo mais conhecido desde o início do século XX – “a tripulação, é de três a cinco pessoas. Essa turma trabalha num espaço de aproximadamente 5 a 7 metros, em média (na maior extensão, embora haja jangadas maiores de 8 metros), por 1,7 a 1,4 metros, na menor extensão”.

Resultado de imagem para competições de jangadas no CearáEm Fortaleza as competições ocorrem duas vezes ao ano com muitos jangadeiros

VELAS DO MUCURIPE, COMPETIÇÕES NO CEARÁ

Pescadores tradicionais sempre obedecem a regras básicas como uso das marés, regimes de ventos, correntes marinhas e sazonalidade da pesca. As incursões no mar variavam bastante quanto ao tempo de permanência, trajeto navegado e tipo de “peixe bom” que conseguem. Conforme nosso jangadeiro-museólogo “um período de permanência comum era de três dias no mar alto, a até 120 quilômetros da costa”. Mas essa duração é cada vez mais rara, como ele admite com incursões que “não vão mais além de até 50 quilômetros distanciados da costa”.

Vale destacar a presença marcante em Porto de Galinhas, em Pernambuco e em vários pontos do litoral cearense, de modo emblemático. Há, inclusive, corridas de jangadas, com duas provas anuais na região da enseada de Mucuripe (em Fortaleza). Dezenas de jangadas (“as velas do Mucuripe”) participam dessas competições, num espetáculo sem paralelo no extenso litoral brasileiro.

ÍNDIOS E NEGROS ESCRAVIZADOS JÁ A UTILIZAVAM

Estipula-se que a pesca artesanal sustente cinco milhões de brasileiros e muitos ainda usam a mais antiga das embarcações como “meio de vida”. Ninguém sabe ao certo a origem da jangada. No Brasil, foi citada pela primeira vez tão logo um europeu pôs os pés, oficialmente, no território. Em 26 de abril de 1500, quando a frota cabralina desembarcou em Coroa Vermelha, no Sul da Bahia, para acompanhar a primeira missa, a presença de jangadas foi testemunhada e descrita pelo escrivão Pero Vaz de Caminha:

“…E alguns deles se metiam em almadias…duas ou três que aí tinham…as quais são feitas como as que eu já vi – somente três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé…”


“Almadias”, designação adotada por Caminha, são embarcações africanas e asiáticas feitas de um único tronco, mesmo que ele faça a distinção. Mas é visível o quanto, em mais de cinco séculos, a embarcação mudou pouco. A tese mais aceita pelos pesquisadores diz que a jangada foi uma evolução da “piperi”, feita com três troncos amarrados, que era usada pelos índios, quando da chegada dos portugueses ao Brasil.

Registros de sua utilização são encontrados no início do século XVI, quando eram utilizadas por escravos africanos para pesca na capitania de Pernambuco. “O jangadeiro é filho de jangadeiro. Um por mil, não tendo a profissão fixada, escolhe a jangada para viver” (do clássico “Jangada: uma pesquisa etnográfica”, de Luís da Câmara Cascudo, 1964). Outros autores quinhentistas também citaram e descreveram a jangada, como Jean de Lery, em seu clássico “Viagem à Terra do Brasil.”

Imagem relacionadaA coragem dos jangadeiros os faz enfrentar as ondas em busca do pescado e viraria cartão postal no Brasil

No caldo de culturas, o nativo pré-cabralino colaborou de um lado e o europeu de outro. O índio sendo a base da formatação da jangada, com os troncos amarrados e o europeu com a inserção da vela. Hoje, as jangadas são feitas de tábuas ou fibra e navegam por mais de 30 anos. A mesma jangada serve a várias gerações. Mas percebe-se o quanto as estamos perdendo de vista no oceânico horizonte da história no litoral da Bahia.

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